domingo, 29 de janeiro de 2012

O cético (Coletânea)

O CÉTICO

Cansado e com fome, Rafael acordou, ouvindo passadas. Abriu os olhos e com a vista ainda embaçada viu a senhora manca e cega de um olho que, tarde da noite, entrava naquela encruzilhada com uma sacola preta nas mãos. “Talvez agora ela me dê ouvidos!” pensou ele que, sem perder tempo, se levantou e foi tentar se desculpar por mais uma vez:
– Sinto muito pelo meu atrevimento! Eu estou, profundamente, arrependido! Retire a maldição e deixe-me ir embora, por favor... – pedia em tom de desespero, contudo, a sombria mulher parecia não poder ouvi-lo. Como fazia das outras vezes, abriu a sacola que trazia consigo e iniciou a fazer uma oferenda destinada ao mundo espiritual.
Assistindo a tudo, Rafael continuava a implorar por perdão até que, cansado de ser ignorado, perdeu a paciência:  
– Velha maldita! – Por que nunca me responde?! – gritou, com ódio, enquanto a mulher, de fisionomia marcada pelo tempo, acendia velas e colocava algumas frutas no interior de uma alguidar.
Novamente não houve nenhuma resposta e tomado pela fúria, Rafael tentou por diversas vezes agredi-la com socos e ponta pés, contudo, seus golpes atravessavam o corpo frágil daquela senhora como se ela não estivesse ali. Sem conseguir compreender aquele estranho fenômeno o rapaz continuou a desferir golpes e mais golpes, num esforço inútil, até sentir suas forças se esvaírem por completo.
Em meio a um choro sofrido, desabou sobre a calçada ouvindo a reza final daquela mulher que em seguida foi embora sem sequer olhar para ele. “Velha cruel!” pensou enquanto observava a senhora manca dobrando a esquina no final da rua.
Naquele momento sua raiva só não era maior que a fome, fato que o fez se arrastar até a oferenda – junto ao poste – onde vultos negros já disputavam espaço para sugar a energia etérica daqueles alimentos que estavam ali contidos. (Frango, frutas e bebida alcoólica... para alguém que já não comia há dias, aquilo era um verdadeiro banquete) Rafael juntou-se às entidades e, sem saber ao certo como fazia aquilo, iniciou a tragar a essência daquela oferenda enquanto pensava na ironia que estava vivendo. Justo ele que, desde os 12 anos de idade, chutava as macumbas que encontrava pelas encruzilhadas do bairro, agora necessita delas para saciar a fome. 
Quando finalmente se sentiu ligeiramente melhor, Rafael se afastou das demais entidades. Indo até o muro de uma casa, aparentemente, abandonada, recostou-se. A mente, demasiadamente, perturbada não lhe permitia mensurar a quanto tempo estava aprisionado naquela encruzilhada. Tudo o que conseguia se lembrar era como aquele pesadelo havia começado...    
                                                        
Sabe aquele tipo de pessoa que não acredita, em hipótese alguma, na existência de fenômenos metafísicos, religiosos e dogmas? Pois é... assim era Rafael Lopes. Um jovem de 26 anos que não perdia uma boa oportunidade de zombar da crença alheia. Apesar da pouca idade, seus casos de descaso já eram muitos, pois desde menino nunca tratou com seriedade algo que não fosse passível de ser explicado pela ciência.
Sua história de zombaria teve início aos 10 anos de idade, quando passou a frequentar uma igreja – próxima ao condomínio onde morava – só para ter o prazer de divertir os amigos, debochando dos dizeres do velho padre que realizava as missas dominicais. Aos 12, como se aquilo já não lhe bastasse, passou a chutar as oferendas postas nas encruzilhadas do bairro e a dar boas risadas diante dos gritos de evangélicos, que ecoavam do interior das igrejas protestantes, como se o Deus, todo poderoso, deles sofresse de algum tipo de deficiência auditiva. Ainda na adolescência passou a ridicularizar todo e qualquer tipo de dogma ou ritual religioso com o qual se deparava. Para ele as religiões não passavam de uma grande perda de tempo. Todavia, existem forças com as quais não devemos brincar e Rafael acabou aprendendo isso de uma maneira nada agradável.
A estória, aqui exposta, ocorrida num bairro carioca da zona oeste do estado do Rio de Janeiro, versa sobre um sinistro caso divulgado com o único propósito de alertar que, de uma forma ou de outra, todos estamos sujeitos a responder por nossas ações. 
  8 de novembro de 1996

Era madrugada quando Rafael e Rogério – embriagados – voltavam de mais uma noitada de curtição. Conversavam, animadamente, atravessando uma encruzilhada, já bem próxima de onde moravam, quando viram uma senhora manca e caolha parar em frente a um poste e abrir uma sacola preta de onde tirou velas, bebida, alimentos e duas alguidares.
– Para de sujar a rua e vai pra casa dormir, vovó! – gritou Rafael, arrancando risadas de Rogério.
A senhora virou o rosto na direção dos dois ébrios rapazes que, cambaleando, passavam do outro lado da calçada, mas nada disse. Voltou-se novamente para a oferenda e continuou seu ritual. No entanto, Rafael não parou por aí. Ao ver uma garrafa de 51 que a senhora colocava, cuidadosamente, sobre o chão, resolveu atravessar a rua e dar continuidade ao seu desrespeito. Ele não desconfiava que, desta vez, sua zombaria não iria passar impune.
– Com licença! – disse Rafael apanhando a garrafa de cachaça para si.
– Devolva isso, rapaz!
Rafael ignorou a ordem e carregando a garrafa consigo, atravessou a rua novamente, como se nada tivesse acontecido.
– Miserável! – urrou a senhora apontando o indicador de sua mão velha e enrugada na direção do atrevido rapaz. – Que aquele que tem o poder de fechar e abrir os caminhos para o ser humano aja sobre sua vida trancando-a permanentemente!
Ao ouvir aquelas palavras, Rafael, imediatamente, voltou para chutar tudo àquilo que a senhora havia, cuidadosamente, colocado junto da calçada.
– Estou pouco me lixando para suas maldições sem fundamento, velha bitolada! – Olha o que eu faço com toda essa porcaria! – retrucou, desferindo um forte ponta pé numa alguidar que continha frutas em seu interior. 
Percebendo que seu amigo havia passado dos limites, Rogério aproximou-se para tirá-lo de lá e os dois saíram andando para longe da estranha senhora que continuava a fitá-los.
– Vai se arrepender por isso! – disse à mulher com ódio contido em sua voz.
Sem imaginar que a partir daquele momento, seus dias de zombaria estavam contados, Rafael regressou para casa e após uma semana, já nem lembrava mais deste ocorrido.

15 de novembro de 1996

A noite havia apenas começado quando Rafael desceu do elevador deixando pelo ar um delicioso rastro de seu mais novo Pacco Rabanne.  Bem vestido, o jovem rapaz cumprimentou, educadamente, o porteiro do prédio e então ganhou as ruas indo em direção ao barzinho onde havia combinado de se encontrar com alguns colegas da faculdade. Como o local era próximo de sua casa, não levou mais que 20 minutos para chegar ao estabelecimento e – mesmo do outro lado da rua – já era possível ver como o bar, famoso pela boa música e ambiente agradável, estava lotado. Garçons andavam, de um lado para o outro, com suas bandejas repletas de caldeiretas de chopp enquanto um músico, de belíssima voz, embalava os casais apaixonados, ao som de Lembra de mim de Ivan Lins. 
– Rafael! – vociferou alguém, assim que o rapaz adentrou no bar. Era Rogério, que acenava de uma mesa mais ao fundo.
– Olá pessoal! – cumprimentou o recém-chegado, aproximando-se do grupo que animadamente bebia e jogava conversa fora.
– Cara, você não morre tão cedo! Ainda agora eu falava da maldição que te rogaram! 
– Maldição?! – Que maldição, Rogério? – perguntou, se sentando junto à mesa.
– Não vai me dizer que já se esqueceu daquela velha manca e caolha que você roubou na encruzilhada!
– Ah ta...! – disse Rafael que precisou de um breve instante para se lembrar do episódio. – Aquilo é bobagem! E eu não roubei coisa nenhuma. Só peguei o que ela iria desperdiçar. – Onde já se viu? – Colocar uma garrafa de 51, ainda fechada, numa droga de despacho. 
Todos riram, exceto Vinícius. Um colega de turma que parecia bem preocupado.
– Olha eu não sei não cara... tenho uma tia que mexe com essas coisas e pelo que o Rogério nos contou, acho melhor você procurar um pai de santo para tentar te ajudar!
Rafael sorriu com escárnio.
– Desculpa Vinícius, mas se sua tia “mexe com essas coisas” então ela esta perdendo tempo à toa. Isso tudo é crendice e não passa de uma grande besteira. Não vai acontecer nada comigo!
Disposto a convencê-lo do contrario, Vinícius apanhou um livro de umbanda que trazia em sua mochila e abriu na página onde havia uma imagem da entidade que a velha tinha se referido na maldição que lançara, mas de nada adiantou. O ceticismo jamais permitiria que aquele jovem acreditasse na possibilidade de haver realmente sido amaldiçoado. O grupo então entrou em outros assuntos e, sem que se dessem conta disso, as horas foram se passando. Rafael levou um baita susto quando olhou no relógio e viu que já eram 2h da manhã. Estava muito tarde para alguém que iria trabalhar no dia seguinte. Precisava ir embora e, contrariando os pedidos para que ficasse um pouco mais, despediu-se de todos com a promessa de repetir a dose na sexta-feira da semana seguinte.
– Cuidado com a maldição, hein! – ainda brincou Rogério vendo o amigo deixar o estabelecimento. Aquela foi a última vez que Rafael foi visto com vida.
Do lado de fora, o rapaz que só pensava em chegar a casa e desabar sobre a cama, aguardava por um taxi, mas após 15 minutos de espera, acabou desistindo e resolveu ir a pé mesmo. Fazia uma madrugada fria e mesmo com a blusa de manga longa que vestia, Rafael precisava esfregar os braços para afugentar a temperatura amena. O vento gelado soprava pelas ruas vazias enquanto ele avançava ouvindo o som do bar ficar cada vez mais distante. Quando atingiu a encruzilhada onde, na semana anterior, havia se deparado com a esquisita senhora manca que Rogério mencionara, não pôde deixar de se lembrar da conversa que tivera no barzinho. “Como uns marmanjos daqueles podem acreditar em maldição?” pensava ele, ligeiramente tonto, devido à grande quantidade de bebida alcoólica que havia ingerido.  
– Rafael! – bradou uma sombria voz vinda de trás.
Levando um susto, o rapaz virou-se rapidamente, quase perdendo o equilíbrio, mas não viu ninguém. Estava sozinho naquela rua deserta. Acreditando ter imaginado coisa ele decidiu prosseguir, mas antes que desse um novo passo tornou a ouvir a mesma voz:
– Rafael!
Um calafrio percorreu-lhe a espinha diante a reincidência que lhe dava a certeza de não estar imaginando coisas. Virando-se, lentamente, Rafael empalideceu ao constatar que não estava tão só quanto acreditava. Seus olhos fitaram um sujeito exatamente igual à imagem que Vinícius tinha lhe mostrado no bar. Um homem de porte extremamente fino e poderoso que usava cartola sofisticada. Também uma capa azul turquesa com contraste em vermelho e decorada com safiras amarelas. “Tranca ruas!” lembrou o nome da figura do livro ao mesmo tempo em que disparou a correr. O rapaz que até então jamais havia acreditado naquele tipo de coisa tentou escapar do destino que havia traçado para si, no entanto, numa velocidade sobrenatural, a entidade anulou a distância entre os dois e o agarrou pelas costas. Desesperadamente, Rafael gritou pedindo por ajuda, mas ninguém ouviu seus gritos apavorados.
             – Chegou a hora de pagar por suas travessuras, espírito desvirtuado! – sussurrou a entidade, ao pé do ouvido do rapaz, soltando uma gargalhada malévola.
Após essas palavras a entidade desapareceu e Rafael sentiu como se o seu corpo houvesse desabado, no entanto, viu-se ainda de pé. Estava tão atemorizado e preocupado em sair dali que não se deu conta de que seu corpo físico de fato havia tombado – sem vida – sobre o asfalto frio e que agora era somente seu espírito que, desesperadamente, tentava e continua tentando escapar daquele cruzamento.

Como foi dito anteriormente, todos estamos sujeitos a responder por nossas ações. No dia 16 de novembro do ano de 1996, Rafael Lopes foi encontrado, morto numa encruzilhada do bairro onde morava e sua causa mortis permanece desconhecida.
Atualmente, os despojos mortais de Rafael estão enterrados no cemitério, Jardim da Saudade, em Sulacap... quanto ao seu espírito... bom, até os dias de hoje, ainda ouve-se relatos de pessoas que dizem escutar pedidos de socorro ao passarem pela escura encruzilhada de Jacarepaguá, onde tudo aconteceu.  

Por Thiago Tavares.
CONTOS DE TERROR 

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A dama do lago (Coletânea)

A DAMA DO LAGO

Correndo feito um louco, Eduardo tentava se afastar do lago de onde podia ouvir os gritos desesperados de seu amigo sendo arrastado pela assombração. Durante a corrida, vez ou outra, escorregava caindo sobre a lama fofa, mas logo em seguida tornava a se levantar e, sem olhar para trás, disparava a correr novamente. Com passadas largas tentava alcançar à ponte de acesso a entrada da cidadezinha onde morava. Era lá que haviam deixado o carro estacionado. Seu meio de escapar daquela coisa.
Quando finalmente atingiu a ponte já não ouvia mais os gritos de Daniel. Apressadamente, abriu a porta do Santana, dando Graças a Deus por seu amigo haver deixado a chave na ignição. Deu a partida e pisou no acelerador deixando para trás aquele lago maldito onde Daniel nunca deveria ter parado. Com o medo que estava sentindo nem  atentou para o fato de estar dirigindo na mão errada e quase bateu contra uma caminhonete que vinha na direção contrária. Foi preciso uma manobra brusca para desviar e, por pouco, o carro não capotou. Com os olhos arregalados olhou, pelo retrovisor, para ver o veículo que por um triz não colidira e empalideceu de medo. Sentada no banco traseiro, estava à mulher pútrida que, vestida num traje esfarrapado, o observava com um sorriso maligno.
Não houve tempo para qualquer reação. As mãos daquela criatura, em decomposição, agarraram seu pescoço. Dotada de uma força descomunal, começou a enforcá-lo. Eduardo já sentia o ar faltar em seus pulmões quando acordou, em sua cama, assustado e com o corpo ensopado em suor. 
– Não aguento mais isso! – exclamou, ascendendo a luz do abajur e levantando-se da cama para apanhar o maço de cigarros que havia deixado no bolso da calça que largara pelo chão. Precisava fumar.  
Com um cigarro pendurado na boca e vestindo somente uma cueca Boxer amarelada que certamente – no passado – já havia sido branca, Eduardo foi até o criado mudo e com as mãos tremulas pegou seu isqueiro Zippo, acendeu o fumo e após uma boa tragada conseguiu tranquilizar um pouco. Olhou no relógio que marcava 3 da manhã e praguejou Daniel pelo medonho pesadelo que até hoje o atormentava. Já estava em seu segundo cigarro quando olhou de relance para o espelho, embutido no guarda-roupa, e viu marcas, estranhas, em seu pescoço. Chegou mais perto e verificou serem marcas de estrangulamento. Com o coração descompassado deixou o quarto em direção a sala onde apanhou uma garrafa de Natu Nobilis de seu mini-bar e iniciou a tomá-la no gargalo. Seus pesadelos ficavam cada vez mais reais e isso era extremamente aterrador.   
Com a garrafa em mãos, Eduardo foi até o sofá, apanhou o controle remoto e ligou a TV, passando os canais sem o menor interesse pelas programações. Estava apenas preocupado em manter-se alerta. Não pretendia dormir novamente. As horas se passavam lentamente e a garrafa de uísque que até então nunca havia sido aberta, agora já estava pela metade. “Já faz tanto tempo!” pensava enquanto continuava mudando os canais.
– Isso tudo é culpa sua, Daniel! – murmurou com a voz típica de um homem embriagado. – Não precisava ter parado o carro lá, mas você parou! – Por que foi tão estúpido?! – continuou como se conversasse com o velho amigo que já havia morrido há anos. – Espero que esteja no inferno, seu desgraçado! Você roubou minha paz! – vociferou, arremessando a garrafa já quase vazia contra a parede.
Dominado pela raiva, fumou mais um cigarro, depois outro e um terceiro que só então conseguiu fazê-lo voltar à calma. Ao longo dos anos o fumo havia se tornado seu calmante e boa parte de seu dinheiro ia embora com maços e mais maços que necessitava comprar para se tranquilizar. Seus nervos estavam sempre à flor da pele, pois diferentemente da maioria das outras pessoas, Eduardo não conseguia dormir em paz. Suas noites de sono eram sempre interrompidas pelo mesmo pesadelo. Fato que o transformou num sujeito mal-humorado que pouco a pouco viu todas as pessoas a sua volta se afastarem. Estava sozinho e envolvido por tormentos. Seu desespero e cansaço se converteram em lágrimas. A descrença de se ver livre daquele sofrimento era praticamente palpável.
Após muito haver chorado, Eduardo, sentindo as pálpebras pesando de sono, enxugou os olhos e viu que o relógio sobre a estante já marcava 5:45 da manhã. Faltava pouco mais de uma hora para ter de começar a se aprontar para o trabalho. Estava um caco e sem ânimo algum. Já não era mais capaz de suportar aquela guerra contra seus medos e decidiu se render. Levantando do sofá, ele foi até o rack e abriu uma pequena gaveta de onde retirou o recorte de uma manchete de jornal que vinha guardando consigo.  
– Quer me pegar sua miserável? – indagou olhando para aquele pedaço de papel velho. – Pois então venha! Eu não vou mais fugir de você. – concluiu voltando para o sofá, onde se deitou. Os olhos começavam a se fechar quando resolveu fazer uma última coisa.
De todas as pessoas que haviam se afastado de sua vida, seu filho era o que mais lhe fazia falta. Eduardo sentiu que precisava se desculpar e assim ele fez. Apanhou o telefone sem fio e discou o número que ainda se lembrava de cor. Era 5:50h quando Pedro Henrique acordou com o telefone tocando.
– Alô! – resmungou, ainda zonzo de sono.
– Pedro!
Um breve silêncio se fez.
– Pai?!
– Desculpe por tudo, meu filho! Não fui um bom pai e também não fui bom em mais nada... sou apenas um homem cansado da maldição que carrega! Ela me viu e não importa o quanto eu fuja, nunca vai desistir de me perseguir! – Perdoe-me filho... perdoe-me...
– Pai! O que houve?! – Do que você está falando? – perguntou Pedro, levantando da cama preocupado com o tom de voz choroso do pai, com quem não falava há anos. Todavia não houve resposta. Eduardo Já havia desligado.
Percebendo não haver mais ninguém do outro lado da linha, Pedro largou o telefone, vestiu uma camisa amarrotada, colocou uma bermuda qualquer e apanhando as chaves do carro, saiu de casa. Enquanto isso, distante dali, Eduardo permitia que seus olhos se fechassem. Deixava-se vencer pelo sono. Dali em diante, foi questão de tempo para seu tormento recomeçar.
Em poucos instantes estava revivendo a cena que ocorrera em 1988, no Maranhão, quando voltava de uma festa, no meio da madrugada, de carona com Daniel que resolveu parar o carro para ajudar uma mulher que vira vagando com um vestido branco e esfarrapado, manchado de sangue. Em seu repetitivo pesadelo, Eduardo ouvia os gritos de seu amigo sendo puxado para o interior do lago pela assombração que ele havia acreditado ser uma mulher precisando de ajuda. Olhou para a estrada e viu o Santana esperando por ele para fugir dali, mas dessa vez Eduardo não arredou o pé de onde estava. Ao invés de fugir, ficou ali, estático, vendo o responsável por todo o sofrimento que ele passará sendo levado para as profundezas do lago. Jamais havia perdoado Daniel por haver parado o carro naquela fatídica noite de outubro e não escondeu sua satisfação ao assistir a morte daquele desgraçado. Não demorou muito e a sinistra mulher, vestida de branco, saiu novamente do lago e, numa velocidade sobrenatural, anulou a distância que havia entre ela e Eduardo que em nenhum momento pensou em escapar. A mulher de pele extremamente pálida e fria o agarrou e sem encontrar resistência alguma arrastou para o fundo do lago aquele homem que já estava farto de viver atormentado.
Pouco mais de uma hora depois, Pedro freou bruscamente em frente a casa onde crescera. Saiu do carro e, por diversas vezes, tocou a campainha. Como seu pai não atendia, o rapaz – preocupado – arrombou a porta e apressadamente ingressou pela sala, que tinha uma mancha de uísque numa das paredes e estilhaços de vidro de uma garrafa quebrada pelo chão. Eduardo, inerte, jazia sobre o sofá e após não obter êxito em acordá-lo, Pedro pegou o telefone e discou 192. 
Uma ambulância já havia sido enviada ao local quando ele identificou um pequeno papel sobre o chão. Pedro o pegou e viu se tratar de uma manchete antiga sobre o caso de uma mulher que fora estuprada, assassinada e seu corpo jogado num lago. A matéria informava ainda que o assassino nunca fora pego e que o caso gerou uma lenda no Maranhão. Uma assombração que vagava nas imediações do lago, onde o corpo da moça foi encontrado, matando indivíduos do sexo masculino. No título da manchete lia-se: A dama do lago.
Pedro Henrique terminou de ler aquele recorte, amarelado, quando viu o socorro chegar. O rapaz ainda tinha esperanças de seu pai estar com vida, no entanto, Eduardo já estava morto. O óbito foi declarado ali mesmo no local. O mais intrigante foi que nenhum legista conseguiu explicar ao certo porque o corpo que fora encontrado morto sobre um sofá, tinha os pulmões repletos d'água, dando indicio de morte por afogamento.

Por Thiago Tavares.
              CONTOS DE TERROR 

domingo, 15 de janeiro de 2012

A casa de bonecas (Coletânea)

A CASA DE BONECAS

Casos de desaparecimento acorrem, rotineiramente, ao redor de todo o mundo e no Brasil não é diferente. Por aqui, cerca de 40 mil crianças e adolescentes desaparecem por ano e aproximadamente 10% a 15% desse total de jovens permanecem com o paradeiro desconhecido. Uma triste estimativa que atinge famílias de todas as classes sociais do país.
A Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPECA) recomenda que em casos de desaparecimento, o primeiro lugar onde devemos procurar são os arredores do local no qual o indivíduo supostamente sumiu. A polícia aconselha também que seja realizada uma rápida busca pelas delegacias de polícia, hospitais e pronto-socorros, além de registrar um boletim de ocorrência informando à DPECA ou ao Conselho Tutela sobre o desaparecimento do jovem. Embora algumas pessoas desconheçam, não é necessário esperar 24h para registrar o boletim de ocorrência, pois ele pode ser feito a qualquer momento. As primeiras horas que sucedem o sumiço são essenciais para aumentar as chances de sucesso na localização e proteção do desaparecido.  
Renata, funcionária pública do estado, moradora de Linhares, realizou todos esses procedimentos para tentar localizar sua filha de apenas 8 anos de idade, mas até hoje a pequena Isabela faz parte do percentual de jovens do Brasil que continuam desaparecidos. A estória que vou lhes contar aconteceu no ano de 2007, em Espírito Santo, e versa sobre um sinistro caso de desaparecimento.
Era final de tarde quando Renata olhou para o relógio pendurado sob a porta e respirou aliviada. 18:30h era o que os ponteiros indicavam. Rapidamente guardou seus pertences, desligou o computador, se despediu dos colegas de trabalho que iriam fazer hora extra e então desceu as escadas do Tribunal de Justiça. Graças ao horário de verão o dia ainda estava claro e a rua Alair Garcia Duarte bem movimentada. Fatores estes que motivaram Renata a regressar a pé para casa. Normalmente voltava de ônibus, no entanto, não era nenhum sofrimento percorrer, na caminhada, a distância de pouco mais de três quarteirões.
Ao longo da calçada, vendedores ambulantes e vitrines de loja apresentavam suas promoções de fim de ano e Renata acabou resolvendo fazer umas comprinhas (A famosa terapia de relaxamento que as mulheres costumam realizar quando tem um dia difícil). Entrou numa loja de calçados que tinha um enorme letreiro onde lia-se: Liquidação no interior da loja. Após uns 30 minutos, a funcionária do estado, saiu de lá carregando uma bolsa onde continha dois Scarpins e uma sandália rasteirinha. Perceptivelmente sua fisionomia era outra. Já nem lembrava mais a mulher que tivera um dia de trabalho sobrecarregado. Renovada ela seguiu adiante e não pretendia comprar mais nada, contudo, ao ver a loja de antiquários do senhor Gilberto ainda aberta, não resistiu e entrou, relembrando que fora Humberto – seu saudoso avô – quem a ensinara a apreciar objetos antigos.
– Boa noite, senhor Gilberto! – cumprimentou após passar pela porta. – O que tem de novidade?
Sentado atrás de um balcão tentando concertar um rádio vitrola, o senhor, que aparentava mais idade do que ostentava, não resistiu e então respondeu:
– Desculpe, mas se quer novidades, veio ao lugar errado! Caso não tenha notado, Isso aqui é uma loja de antiguidades! – brincou ele, com um enorme sorriso no rosto ao ver quem entrava em sua loja. – Olá minha querida! – disse ele, em seguida, largando de lado o que fazia. – Como vai a minha freguesa predileta?   
Renata sorriu.
– Vou bem, obrigada!
– Já faz alguns dias que não a vejo!
– Pois é, senhor Gilberto. Estou tendo uma semana difícil no trabalho... você sabe como é...
– Eu entendo! – respondeu o velho feliz em vê-la novamente. – Venha comigo! Vou lhe mostrar os produtos que chegaram ontem pela manhã. – Tem uma mesinha redonda, de centro, que acho que você vai amar!  
Renata seguiu animada aquele senhor de andar vagaroso até atingir os fundos da loja onde lhe foi apresentado às mobílias antigas que haviam chegado, no entanto, foi algo diferente que chamou sua atenção. Uma casa de bonecas, ricamente detalhada, que estava sobre uma estante de carvalho.
– Que linda! – exclamou, encantada.  
– Concordo plenamente. Essa é uma mesa muito rara! – respondeu Gilberto acreditando que sua cliente falava da mesinha de centro que ele apresentava. – O que mais me impressiona é o excelente estado de conservação que essa peça do século XIX ainda ostenta e...
– Desculpe senhor Gilberto, mas eu me referia sobre aquela casa de bonecas! – interrompeu Renata, já sabendo que se não o fizesse, iria ouvir por um bom tempo a história sobre uma mesinha de centro.  
– Ah! Por que não disse logo?! – inquiriu, meio sem jeito, indo até a estante de carvalho. – Venha! É ainda mais bonita de perto.
Renata obedeceu.
– Nossa! – balbuciou ela olhando, através das janelinhas, o interior da casa repleto de bonecas.
– Parece até uma casa de verdade, não acha? Nunca vi algo do tipo. 
– Sim. Os detalhes são incríveis! – respondeu admirada. – Sempre quis ter uma dessas quando criança, mas meus pais nunca puderam comprar uma para mim... era muito caro para o curto orçamento de nossa família.
– Bom, nunca é tarde para realizar um sonho!
– Não senhor Gilberto... eu já estou muito velha para essas coisas, mas acho que talvez eu possa dar essa alegria a outra pessoa.
– À pequena Isabela, eu suponho! – arriscou Gilberto.
– Exatamente!
– Pois eu acho que ela vai adorar!  
– Espero que sim! – Quanto custa?
– Ainda não estipulei um valor! Eu a recebi ontem à noite de um antigo cliente, colecionador de antiguidades.
– Hum... entendi! – Que tal R$ 100,00?
– Não era bem o preço que eu tinha em mente, mas acho que posso fazer essa promoção para uma cliente como você! – disse Gilberto apanhando a casa de bonecas para colocá-la numa caixa.
Conversando trivialidades, os dois retornaram para o balcão da loja e ali fecharam negócio. Renata entregou o dinheiro e já se despedia quando foi tomada por uma súbita curiosidade:
– Diga-me senhor Gilberto! – Por que motivo esse seu antigo cliente colecionador se desfez de uma casa de bonecas tão linda como esta?
– Ele não tinha mais motivos para tê-la! – respondeu o velho meio pesaroso em dizer aquilo. – A filha dele desapareceu há pouco mais de três anos.  
– Nossa! Que trágico.
– Sim! O nome dele é André. Além de meu cliente é também um grande amigo e acompanhei de perto seu sofrimento. Desesperado com o sumiço da filha única, chegou a pensar em se suicidar, mas felizmente André aceitou meu convite e entrou para uma religião que esta fazendo muito bem a ele. Esta aprendendo a lidar com a dor e finalmente criou coragem para entrar no quarto que era da menina. Aos poucos esta se desfazendo dos objetos que podem ter serventia para outras crianças.
– Eu não o conheço, mas, por favor, dê meus sentimentos a ele. Não consigo nem imaginar qual seria a minha reação se algo parecido acontecesse com Isabela.  
O telefone da loja tocou e Gilberto, pedindo a Renata que aguardasse alguns instantes, interrompeu a conversa para atendê-lo. O telefonema parecia ser a respeito do rádio vitrola que estava sobre o balcão e que ainda não havia sido consertado. O diálogo ao telefone se estendeu e Renata, incomodada com a espera, olhou em seu relógio de pulso que já indicava 20:00h. Decidiu então que iria para casa e acenando para Gilberto, que explicava ao cliente os motivos pela demora no reparo do aparelho, prometeu que voltaria outro dia para que pudessem continuar a conversa.  
Levando numa das mãos uma bolsa de sapatos e noutra a caixa contendo seu sonho de infância, Renata deixou a lojinha de antiguidades. A casa de bonecas era pesada, mas como o antiquário era na esquina de sua rua, não foi preciso suportar o esforço por muito tempo. Chegou a casa, abriu a porta e viu sua empregada andando de um lado para o outro com o telefone sem fio nas mãos.
– Renata! – exclamou ao ver a patroa entrar. – Estava preocupada! Tentei te ligar, várias vezes, mas esta caindo na caixa postal! – Aconteceu alguma coisa?!   
– Não Gabi, está tudo bem! – Desculpe não ter avisado que iria chegar mais tarde, mas é que resolvi, de última hora, fazer umas comprinhas. – explicou Renata colocando a caixa e a bolsa sobre a mesa da cozinha. – Devo ter esquecido meu celular no trabalho... estava com tantas coisas na cabeça que nem me atentei para isso. – Cadê a minha filhota?
– No quarto, assistindo desenho animado.
Isabela gargalhava, assistindo Tom e Jerry, quando sua mãe adentrou no quarto trazendo a caixa que logo fez a menina esquecer a TV.
– O que é isso, mamãe? 
– Um presente para você! – respondeu Renata com um enorme sorriso de mãe coruja contido nos lábios.
A menina ficou encantada ao abrir a caixa e ver a linda casa de bonecas. Irradiando felicidade, pediu para que sua mãe a deixasse chamar a amiguinha Geovana para brincar. Renata olhou no relógio e considerou que ainda não estava tão tarde para sua pequena vizinha fazer uma breve visita. Após receber a autorização, Isabela disparou em direção ao primeiro andar e apanhou o telefone, discando rapidamente os números que sabia de cor.
– Alô!
– Olá senhora Bianca! Aqui é a Isabela.
– Oi Isabela! Tudo bem?
– Tudo! Estou ligando para perguntar se a Geovana pode vir até a minha casa para brincarmos com o presente novo que minha mãe me deu!   
– Você tem um presente novo?! – E qual é? – perguntou Bianca achando graça na maneira educada como a menininha se expressava.
– Uma casa de bonecas! E já vem com um monte de bonecas dentro!
– Nossa, que legal! – Vou levar a Geovanna até aí para vocês brincarem um pouquinho, mas é só um pouquinho mesmo, por que amanhã vocês duas tem que ir para escola, bem cedinho.
– Obrigado, senhora Bianca! – agradeceu, desligando o telefone, em seguida.
Ansiosa para brincar, Isabela correu de volta para o quarto e aguardou pela amiguinha. Não demorou muito e a campainha tocou. A empregada abriu a porta e pediu para que Bianca e sua filha entrassem. Renata desceu as escadas e disse a menininha, de cabelos cacheados que Isabela a aguardava em seu quarto. Imediatamente Geovana subiu desejando ver a casa de bonecas que sua amiga havia ganhado.
Bianca e Renata ficaram na sala a colocar o papo em dia, enquanto as meninas se divertiam no andar de cima.
– Olha a roupinha dessa aqui! – exclamou Geovanna, observando as vestes modernas da qual segurava.
– E essa aqui! – parece até as roupas que vovó costuma usar! – disse Isabela, mostrando uma das outras bonecas que usava vestidinho no modelo dos anos 60.
– Elas parecem ser de verdade, não acha?
– Parecem mesmo! – respondeu Isabela observando os traços perfeitos que as bonecas possuíam. – Eu quero ser essa! – disse ela, em seguida, escolhendo aquela que considerou ser a mais bonita.       
– E eu vou ser essa! – disse Geovana, por sua vez, apanhando outra.
As duas meninas ficaram a brincar por cerca de duas horas até que Bianca, lá de baixo, chamou sua filha para ir embora. Geovana pediu que ficassem um pouco mais, contudo, seu pedido foi negado, pois já estava muito tarde. Sem alternativa a garotinha então se despediu da amiga e prometendo voltar no dia seguinte, partiu ao lado da mãe. Renata então mandou que Isabela se preparasse para dormir. Em poucos minutos a menina já estava vestida com seu pijama listrado e deitada sobre a cama esperando o beijo de boa noite de sua mãe.
Renata entrou no quarto, sem bater, cobriu a filha com um lindo cobertor de estrelinhas e em seguida a beijou, carinhosamente, sobre a fronte.
– Boa noite, filhota!
– Boa noite, mamãe!
Deixando a porta entreaberta para que a luz do corredor confortasse a menina que ainda não estava acostumada a dormir no escuro, Renata saiu indo para seu quarto onde desabou, pesadamente, sobre a cama e dormiu como uma pedra. O mesmo não aconteceu com Isabela que custou a cair no sono. Envolvida pela penumbra de seu quarto ela admirava o novo brinquedo enquanto suas pálpebras iam ficando cada vez mais pesadas. Quando finalmente já estava quase adormecendo, levou um susto ao ver uma das luzes da casa de boneca se acender e, imediatamente, a menina se sentou sobre a cama esfregando os olhos. “Como isso é possível?!” pensou ela desacreditada do que via.
Saiu da cama e, pé ante pé, foi se aproximando da pequena casa que tinha uma pálida luz saindo da janela da sala. Assim que chegou perto o suficiente, suas pernas estremeceram, pois todas as bonecas que, cuidadosamente, tinha colocado nos quartos agora se encontravam na sala, reunidas ao redor de uma mesinha. No exato instante em que viu essa cena, Isabela foi bombardeada com o som de inúmeras vozes de meninas pedindo por socorro e, apavorada, protegeu os ouvidos com as mãos. Dominada pelo medo, correu em direção a porta entreaberta para chamar por sua mãe, no entanto, a porta se fechou bruscamente antes que ela pudesse sair. Gritando Isabela pediu por socorro, mas misteriosamente sua voz parecia não sair daquele cômodo. Em meio ao desespero ela teve a viva impressão de que a luz da casa de bonecas ficava cada vez mais forte. Uma claridade intensa ofuscou seus olhos e após isso os gritos cessaram.
No dia seguinte, ao som de seu fiel despertador, Renata acordou e como fazia todos os dias, foi até o quarto de sua filha chamá-la para se preparar para a escola. Como não a encontrou, percorreu todos os demais cômodos da casa. No primeiro andar – já notadamente abalada – acordou a empregada perguntando pela filha, mas a pobre mulher, assim como ela, não sabia de nada.
 Completamente nervosa, a mãe da menina apanhou o telefone e ligou para a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente. Como eu havia dito anteriormente, Renata cumpriu todos os procedimentos necessários para tentar encontrar a filha que havia desaparecido sem deixar rastros, mas até hoje Isabela continua fazendo parte do percentual de jovens desaparecidos do Brasil. Ninguém jamais atentou para a nova bonequinha, de pijama listrado, no interior da casa de bonecas.  

Por Thiago Tavares.
CONTOS DE TERROR  

domingo, 8 de janeiro de 2012

Yamaraj (Coletânea)

YAMARAJ: O JOGO DA VERDADE

Guilherme estava no quarto, vidrado num desses sites de relacionamentos da internet, quando de repente o telefone tocou. “Dessa vez eu atendo!” pensou ele saltando da cadeira. Correu, feito um louco em direção a sala, mas, como sempre, sua irmã foi mais rápida. Nathália era o tipo de garota que não desgrudava do telefone. Estava sempre esperando pelas ligações do namorado.
– Alô! – disse ela com uma voz melosa, já prevendo quem poderia ser. – Oi amor! Tudo bem?
Guilherme bufou de ódio e seguiu para a cozinha a fim de descarregar aquele sentimento em cima de quem poderia fazer alguma coisa a respeito: Sua mãe. (o que costumava ser uma rotina naquela casa, pois Cíntia sempre acabava tendo de resolver as constantes brigas entre os dois.)
– Mãe!
– O que é dessa vez, Guilherme?
– Quantas vezes eu já pedi para instalar mais uma linha telefônica aqui em casa?
– Não sei. Parei de contar depois da milionésima vez!
– E por que não instala logo?
– A resposta é muito simples, Guilherme! Dinheiro não cai do céu!
– Então manda a Nathália dizer pro babaca do Fabrício parar de ligar de 10 em 10 minutos! 
– Não fale assim do namorado da sua irmã, menino! – repreendeu a mãe alterando o tom de voz.
– Ele é um babaca mesmo! Por que não liga pro celular dela? – O telefone fixo é para o uso de todos os moradores da casa... TODOS! Ultimamente, parece que se tornou uma exclusividade da Nathália!
– Santo Deus! Já expliquei, por diversas vezes, que é por causa da promoção que temos de fixo pra fixo... Você sabe muito bem que é mais vantajoso para eles utilizar o telefone convencional!
– Maldita promoção!
– Deixe-os em paz, Guilherme! Você vai entendê-los quando também tiver uma namorada!
– Entender?! Eu nunca vou entender isso! Eles moram no mesmo quarteirão e vivem pendurados no telefone! Também quero receber ligações dos meus amigos, mas assim fica praticamente impossível e blá, blá, blá, blá, blá...
Cíntia respirou profundamente, pedindo a Deus que lhe concedesse paciência enquanto desdobrava-se para dar atenção ao filho revoltado e, ao mesmo tempo, preparar o almoço. Guilherme, por sua vez, não parava de resmungar até que Nathália apareceu na cozinha.
– Do que este chato de galocha já está se queixando?
– Ora! Do que você acha? – perguntou Guilherme, soltando fogo pelas ventas. – Estou reclamando de você e do babaca do seu namo...
– Epa! Pera lá! Veja bem como fala do meu namorado, seu cabeção! – Dá um jeito nesse menino mãe!
Guilherme já estava prestes a pular no pescoço da irmã quando o grito histérico de Cíntia ecoou por todos os cômodos da casa:
– CHEGAAAAA! – berrou, quase arrancando os cabelos. – Eu não aguento mais isso! Estou precisando, urgentemente, de umas férias de vocês dois.
– Pois eu tenho a solução!
– Vai me dar uma passagem para passar uma temporada em Miami? – indagou Cíntia, tentando acalmar os nervos.
– Não, sua boba! – respondeu Nathália sorrindo. – Fabrício esta convidando eu e esse chato para passar o feriadão na casa de campo dos pais dele.
A fisionomia de desespero desapareceu por completo do rosto de Cíntia. A ideia soava tão bem aos seus ouvidos que já nem se lembrava mais da recente discussão dos filhos. Fazia tempo que não ficava a sós com o maridão. 
– A casa de Miguel Pereira?
– Sim. Essa mesma!
– Os pais dele também vão?
– É claro que sim, mãe! – respondeu, desviando os olhos.
– Eu não vou a lugar algum! – protestou Guilherme percebendo que sua mãe estava prestes a concordar com aquilo. – Não quero ter de aturar esses dois pegajosos durante todo o feriado!
– Pois a mim, parece uma excelente ideia. – Conversarei com seu pai quando ele chegar do trabalho e, caso ele concorde, vocês podem ir. – Quem sabe, conhecendo melhor o Fabrício você não para de chamá-lo de babaca!
Nathália sorriu, debochando do irmão que, esperneando, voltou para o quarto onde, batendo a porta com violência, se trancou. Faltavam dois dias para o feriadão. 
– Está levando agasalho? – inquiriu Cíntia observando a filha enfiar a última bolsa no porta-malas do carro de Fabrício.
– Estou, mãe! – murmurou, esforçando-se para comprimir tudo ali dentro.
– E o repelente de insetos? Não vai conseguir dormir sem ele! – Está levando dinheiro suficiente para você e seu irmão?
Nathália virou os olhos, sem paciência, para todas aquelas perguntas e percebendo isso, Fabrício tomou a palavra:
– Não se preocupem! Seus filhos vão ficar bem. São só alguns dias e logo eles estarão de volta sãos e salvos!
– Está brincando?! – perguntou Ricardo – pai do casal de irmãos – ajudando a fechar o porta-malas que, recheado com tantas bolsas, parecia que ia explodir a qualquer momento. – Estou preocupado é com seus pais que terão de suportar a dura tarefa de aturar esses dois durante todo o feriado! – concluiu, jogando todo o peso do corpo contra a porta que só então fechou. 
– Meus pais?!
– Sim! – Eles já pegaram a estrada ou vão mais tarde?
– Vão mais tarde! – respondeu Nathália, rápida como um relâmpago. – Não é mesmo, amor? – Disseram que ainda tinham algumas coisas para resolver.
– É verdade! – respondeu Fabrício, tentando dissimular sua irritação. Ele odiava ser o último a saber de algo, principalmente se o tal algo fosse envolvê-lo numa mentira da qual ele teria de confirmar. 
– Bom, seja lá o que for é melhor que eles resolvam logo. Um engarrafamento quilométrico estará esperando por eles!  – A propósito, pela hora... – continuou Ricardo, olhando para seu enorme relógio de pulso, que mais parecia um daqueles de pendurar na parede de tão grande que era. – Eu o aconselharia a entrar no carro e pisar na tabua , do contrário vocês também serão vítimas do típico congestionamento dos feriados. 
– Bem que eu gostaria, mas estou esperando dois amigos que também irão conosco. Aliás eles já deveriam ter Chega...
Fabrício nem sequer havia concluído a frase quando um carro, em alta velocidade, surgiu na esquina roubando a cena. Uma freada brusca se fez e o automóvel estacou bem próximo. 
– Obrigada pela carona, pai! – agradeceu uma moça bonita, de cabelos loiros, deixando o carro, acompanhada de um jovem que carregava duas gordas mochilas.
O pneu cantou e o carro saiu em disparada novamente.
– Olá Fabrício! Sinto muito pela demora! Elisa resolveu mudar tudo que tinha na bolsa, minutos antes de partirmos!
– Desculpem! Papai ainda tentou diminuir nosso atraso!
– Eu percebi! – respondeu Ricardo. – Seu pai é piloto de fórmula 1? – concluiu, sem perder a oportunidade de fazer a piadinha sem graça que é claro, ninguém riu.
– Roberto, Elisa... permitam-me apresentá-los meus sogros, Ricardo e Cíntia.
Percebendo que iria segurar vela para mais um casal, Guilherme, até então calado, iniciou suas reclamações e protestos na tentativa de convencer os pais a deixarem que ele ficasse, mas como já imaginava não adiantou. Em poucos instantes ele já estava dividindo espaço, no banco traseiro, com Roberto, Elisa e as duas bolsas gordas que nem mesmo com muito custo couberam no porta-malas.  Fabrício ligou o som, deu a partida e, com duas leves buzinadas se despediu dos sogros que acenavam sem desconfiar dos perigos que seus filhos iriam correr naquela viagem.  
Na estrada – ao som de Linking Park – Roberto e Elisa se esfregavam e se beijavam, no banco de trás, enquanto Guilherme, ainda mais espremido que antes, prestava atenção na discussão entre sua irmã e o namorado; contudo, a música tocava numa altura tão absurda que ele mal conseguia acompanhar o que os dois falavam. Foi somente após alguns quilômetros rodados que ele finalmente conseguiu apanhar o fio da meada. Nathália havia inventado a estória de que os pais de Fabrício também iriam a Miguel Pereira. Na verdade, não haveria nenhum responsável na casa de campo. Somente um bando de jovens.       
– Você mentiu para os nossos pais! – gritou, enfurecido por não saber disso anteriormente, pois com aquele argumento, certamente teria conseguido fazer a viagem ir por água a baixo. 
Quase que imediatamente após ouvir aquele grito histérico, Nathália diminuiu o volume do som e virou-se para trás, fuzilando o irmão com os olhos.
– Não se meta na conversa, seu pirralho enxerido!
– Eu me meto aonde eu bem entender! Deixa só papai e mamãe saberem disso! Você ta ferrada!
– Não se atreva ou eu conto sobre os vídeos pornográficos que você anda assistindo na internet!
Sentindo o rosto enrubescer, Guilherme emudeceu e Roberto, sentado ao seu lado, teve de conter a risada para não deixar o garoto ainda mais constrangido. Fabrício e Nathália voltaram a discutir sobre a mentira que ela havia forjado para os pais; no entanto, não demorou muito até este assunto sair de pauta e descambar para uma D.R (discussão de relação). A briga agora mais parecia um jogo de tênis onde os jogadores se enfrentam, batendo e rebatendo a bola, na tentativa de marcar o ponto na falha do adversário. Só que neste caso a bola era representada por fatos mal resolvidos retirados do fundo do baú. Acusações de um lado, esquivas e contra acusações do outro... o resultado não poderia ser diferente: De um lado um emburrado e do outro uma magoada. Dali em diante ninguém falou mais nada. Somente a interação dos vocais Chester Bennington e Mike Shinoda podia ser ouvida no interior do carro e também do lado de fora, num raio de 20 metros, já que Fabrício só escutava música numa altura da qual os decibéis já são capazes de causar algum tipo de distúrbio indesejável na audição humana.
“Ao menos não pegamos engarrafamento!” pensava o constrangido Guilherme, ao som de rock pesado, imaginando que logo iria poder deixar aquele carro e se enfurnar num dos quartos da casa de Fabrício esperando pelo fim do feriado. Ledo engano, pois antes mesmo que alcançassem a saída da cidade, ingressaram num congestionamento daqueles capazes de deixar qualquer um alucinado. O ponteiro do velocímetro que outrora indicava 80, agora oscilava entre 15 e 25 km/h, isso quando o carro se movimentava. Em pouco tempo o CD predileto de Fabrício já estava repetindo as músicas pela segunda vez, o que acabou fazendo-o optar pelo rádio, entretanto, desligar o aparelho de som acabou sendo a melhor escolha, pois as estações mais chiavam do que tocavam. A trilha de fundo então passou a ser a horrível melodia das buzinas ecoando ora aqui, ora acolá. Para completar o quadro de calamidade o ar condicionado do carro estava quebrado e logo o calor infernal passou a ser mais um incômodo. 
Derretendo no interior do carro, os jovens só atingiram a entrada do município de Miguel Pereira no final da tarde. Quando o sol já se despedia, Fabrício parou o carro no primeiro posto que avistou, para reabastecer e todos aproveitaram para sair e esticar as pernas. A viagem havia sido longa e exaustiva.
– Encha o tanque, por favor! – pediu Fabrício, ao frentista que veio abordá-lo. 
– Olha amor! – exclamou Elisa, cutucando Roberto que se espreguiçava, prazerosamente. – Tem uma loja de conveniências aqui! Vamos até lá comprar umas bebidas? 
– Tudo bem! – respondeu, já sendo puxado pela namorada apressadinha.
– Eu vou com vocês! – convidou-se Nathália, sendo seguida pelo irmão.
– Ótimo! Vão e me deixem aqui sozinho, eu não me importo! – murmurou Fabrício, por entre os dentes, enquanto aguardava o frentista.
Lá dentro, cada um seguiu para um lado: Roberto e Elisa foram para a seção de bebidas; Nathália – ainda aborrecida pela discussão que tivera mais cedo – foi até a seção de doces para comprar alguns chocolates e Guilherme, sem o menor interesse nos produtos da loja, rumou para a seção de congelados a fim de se refrescar no gélido ar dos refrigeradores. 
– 80 Reias?! – espantou-se Fabrício com o preço. – O que você pôs aí no tanque? Petróleo puro? 
– Muito engraçado, rapaz! – respondeu o frentista demonstrando não estar para brincadeiras. – Você pediu para encher o tanque... eu enchi e, como pode ver aqui visor da bomba, são R$ 80 reais e 45 centavos, portanto faça a gentileza de efetuar o pagamento!
– Tudo bem, tudo bem! – Aqui está!
– Muito obrigado! – agradeceu o sujeito, recebendo as cédulas e entregando o troco em seguida à Fabrício que então rumou para a loja de conveniências sem saber se o rabugento do frentista o havia tratado daquela maneira por estar trabalhando no feriado ou pela brincadeira que fizera com o preço que pagara.
Assim que abriu a porta da loja avistou logo na entrada, próxima ao balcão de atendimentos, uma enorme máquina daquelas de pegar ursinhos de pelúcia; entretanto, não havia somente ursos, mas uma série de outros tipos de brinquedos. Seus olhos brilharam com a visão. Aquela era uma excelente oportunidade para se reconciliar com Nathália.   
– Quanto custa para jogar na máquina de ursos?
– R$ 4,50! – respondeu a funcionaria, extremamente obesa, que estava sentada atrás do balcão folheando uma revista de fofocas.
– 2 fichas, por favor!
Parecendo irritada por haver interrompido sua “importante” leitura sobre a vida alheia, a gorducha abriu uma gaveta de onde retirou duas fichas e as colocou sobre o balcão. Fabrício agradeceu e, com as fichas na mão, se dirigiu até a máquina. Quando o grupo, trazendo os produtos que haviam comprado, se reuniu novamente na entrada da loja, Nathália avistou Fabrício, sentado no capô do carro, sorrindo para ela e segurando um lindo ursinho branco. Seu coração amoleceu e ela correu na direção do namorado para abraçá-lo. “Que cena patética!” pensou Guilherme se dando conta do quanto era fácil se reconciliar com as mulheres. Bastava dar um ursinho de pelúcia e elas já voltam a ficar saltitantes como se nada houvesse acontecido.
– Por que você não é carinhoso como Fabrício? – resmungou Elisa diante da cena.
 Roberto, que sempre fora um namorado dedicado e carinhoso, quase explodiu de raiva ao ouvir aquilo, mas ao invés disso, foi até o casal que fazia as pazes para perguntar a Fabrício onde ele havia conseguido o maldito urso.
– Olha Roberto! Não é uma gracinha? – indagou Nathália agarrada ao mais novo mascote.
– Sim! É um ursinho muito bonito. – respondeu, sorrindo. – Na verdade é por causa dele que vim interrompê-los... Elisa também gostaria de ganhar um! – Em qual seção você o encontrou, Fabrício? – É muito caro?
– Não o encontrei em nenhuma das seções e custou-me apenas R$ 4,50! Eu o consegui na máquina de brindes próxima ao balcão! – Aqui, tome!
– O que é isso?
– Uma ficha para jogar na máquina! Comprei duas, mas só precisei de uma. – Quem sabe essa aqui não lhe traga sorte!
– É... quem sabe!
O grupo retornou para o interior da loja e Guilherme se ofereceu para segurar as sacolas de compras de Roberto, afinal ele precisaria das mãos livres para tentar a sorte na máquina. Este por sua vez agradeceu e então perguntou a Elisa qual ursinho ela iria querer. A bela moça olhou e olhou até escolher um coelhinho rosa, amassado entre um jogo de tabuleiro e uma caixa contendo carrinhos de metal em seu interior. Dizendo que seria difícil pegar aquele, Roberto tentou convencê-la a escolher outro, mas Elisa só queria saber do coelho rosa. Ele então inseriu a ficha na máquina e iniciou a movimentar a garra: Esquerda, direita, cima, baixo e para esquerda novamente. Roberto conduziu a garra até julgar que ela estava exatamente na direção do coelho, virou para trás para receber os votos de boa sorte de Elisa e então apertou o botão.  Todos olhavam apreensivos e embora Roberto torcesse para que fosse o coelho, a garra apanhou o jogo de tabuleiro.
– Bom... pelo menos ganhei alguma coisa! – exclamou, apanhando o jogo pela abertura na parte inferior da máquina. – Como será que se joga isso? – inquiriu olhando a estranha capa preta com o desenho de um enorme pentagrama em chamas contido no centro. 
– Deixa eu ver! – disse Elisa, arrancando a caixa das mãos do namorado. – Nunca ouvi falar deste jogo! – O que está escrito aqui? – Ya-Yama... o quê?
– Acho que é Yamaraj! – arriscou Roberto lendo as letras em vermelho, contidas naquela capa, de gosto duvidoso.
Elisa examinou a caixa a procura de instruções sobre o jogo ou qualquer outro tipo de informação que ali pudesse haver, mas não existia nenhuma outra palavra se não aquela que tivera dificuldade para pronunciar.
– Hei, moça! – gritou ela, chamando a atenção da balconista que continuava focada na revista de fofocas. – Qual é a origem dos brinquedos desta máquina?
– Vem de tudo quanto é canto! – respondeu a mulher com os olhos pregados nas páginas que folheava. – França, Itália, Índia, China e alguns países africanos também.   
– Sei... acho que ela se esqueceu de mencionar o Paraguai! Essa porcaria deve ser de lá. – murmurou ela, devolvendo a Roberto.
– É seu! Eu ganhei para você! 
– Pode ficar. Não era isso que eu queria! – respondeu, deixando a loja de cara amarrada.
O restante do grupo foi logo em seguida, exceto Roberto que inventou ter se esquecido de comprar uma bebida da qual ele adorava. Fabrício pediu para que não demorasse e ele prometeu que seria jogo rápido. Virou-se fingindo que iria até a seção de bebidas, mas, assim que seus amigos deixaram a loja, voltou até o balcão para tentar convencer a funcionária a trocar seu prêmio.
– Desculpe queridinho. Não fazemos trocas desse tipo!
– Por favor, senhora... não é por mim. É pela minha namorada!
– Sinto muito, mas se quer um novo brinde terá de tentar a sorte novamente! – respondeu ela colocando uma ficha sobre o balcão.  
Fabrício já buzinava para apressar Roberto quando ele, finalmente, apareceu trazendo numa das mãos o jogo de tabuleiro e na outra um coelhinho de pelúcia rosa. Ele entrou no carro, entregou o bichinho à Elisa e recebeu um beijo caloroso em troca. Naquele instante, Guilherme considerou que ao menos a viagem estava lhe fazendo descobrir o quanto era difícil a vida a dois. Fabrício deu a partida e então os jovens deixaram o posto levando com eles o jogo que transformaria o feriado num verdadeiro pesadelo.
– Ai que saco! Por que essa TV não fica direita? – indagou Nathália mexendo na antena interna.  
– Não vai adiantar nada, amor! – Não importa o quanto você mexa aí, a tela vai continuar com esse chuvisco barulhento. Essa velha antena já deu o que tinha que dar! Eu pedi ao meu pai que trocasse por outra, da última vez que estivemos aqui, mas acho que ele acabou esquecendo.
– Mas ia passar um filme ótimo hoje! – lamentou ela ainda insistindo em fazer a imagem melhorar.
– Qual filme? – perguntou Elisa que tomava uma cerveja, sentada ao lado de Roberto, no sofá da sala.
– Atividade paranormal 3!
– Cara, que pena! – exclamou Roberto.
– Tudo bem, tudo bem! – Vamos perder esse filme hoje, mas eu prometo que amanhã vou até o centro da cidade e compro outra antena, aí vocês vão poder assistir tudo o que quiserem!
– Isso se não morrermos de tédio até lá! – disse Elisa após dar uma golada demorada em sua garrafa long neck.
– Também não é pra tanto! – retrucou Fabrício. – Sei que o povo daqui não aprecia tanto a noite quanto nós, cariocas, mas talvez ainda consigamos encontrar um barzinho aberto ou então podemos matar o tempo com o jogo que seu namorado ganhou lá no posto.
– Encontrar um barzinho aberto, em Miguel Pereira, há essa hora?! – Duvido muito! O comércio todo já estava fechando quando chegamos! – disse Nathália, desistindo da antena.
– Neste caso, só nos resta à segunda opção! – concluiu Fabrício.
– Ah não! Eu não vou jogar aquele jogo do Paraguai!
– Você nem sabe se é mesmo do Paraguai, amor! Todos nós ouvimos a gorducha da loja dizendo que ele pode ter vindo de diversos locais do mundo.
– Bom... eu não acho uma má ideia. Já vou perder o filme mesmo e, além disso, não temos mais nada para fazer!
– Boa, minha linda! – exclamou Fabrício. – E quanto a você, Roberto? – O que me diz?
– Eu topo também! – Só me diga aonde esta a chave do carro e vou lá fora apanhá-lo.
– É assim que se fala! A chave está em cima da mesa! – respondeu Fabrício apontando para a mesa de mogno decorada com um jarro de flores artificiais. – Mô! Por que você não vai até o quarto e tenta convencer o seu irmão a jogar também? Quanto mais jogadores melhor!
– Tudo bem, eu vou lá chamar aquele chato!
Assim que se viu a sós com Fabrício, Elisa, vestindo um curto vestido preto, descruzou as pernas, com um sorriso malicioso nos lábios. Sem desconfiar do que acontecia na sala, Roberto, desceu às escadas de acesso a garagem, apanhou o jogo, no banco de trás do carro, e então subiu novamente. Ao escutar o barulho das passadas voltando, Fabrício saltou do sofá onde estava se agarrando com Elisa e correu para o banheiro a fim de limpar a boca manchada com o batom da namorada do amigo.
– Demorei muito? – perguntou Roberto abrindo a porta, instantes depois de Fabrício haver deixado a sala.
– Não! – respondeu Elisa, com um sorriso amarelo, enquanto ajeitava o vestido. – Vou pegar mais uma cerveja! – disse ela em seguida. – Quer que eu traga uma pra você, amor?
– Quero sim!
Trancado no banheiro, Fabrício foi até a pia, abriu a torneira e lavou o rosto, com violência, sem acreditar que, por mais uma vez, não havia resistido à tentação. “Quando foi que isso começou?” indagou-se olhando no espelho, com vergonha do próprio reflexo. “Há dois anos ou talvez três... não consigo me lembrar!” pensava ele, atormentado, pelo remorso. Lavou o rosto, novamente, tentando se acalmar, enxugou-se na toalha, pendurada no blindex do box, ajeitou a camisa amarrotada, respirou fundo e olhando, por uma última vez, no espelho, convenceu-se de que a fisionomia aturdida pela culpa havia desaparecido.
Quando, finalmente, voltou para a sala encontrou Nathália e Guilherme já sentados no carpete ao lado de Roberto de Elisa.
– Você esta bem? – perguntou Nathália ao vê-lo se aproximar.
– Estou sim! Por quê?
– Não sei. Você esta com uma carinha...
Fabrício não respondeu de imediato. Passando os olhos, rapidamente, pelo outro casal, ficou tentando imaginar como é que Elisa conseguia agir com tanta naturalidade. Aparentemente, ela não se importava. Pelo contrário, parecia se divertir por manter um caso, bem de baixo do nariz de Roberto.
– Eu estou ótimo, meu amor! – respondeu, finalmente, dando um beijo nos lábios de Nahália e sentando-se ao lado dos demais. – E então, vamos jogar ou não?
– Vamos, sim! Mas só quando eu conseguir abrir essa caixa!
– Posso tentar? – inquiriu Guilherme notando a dificuldade de Roberto.
– Vá em frente, sabichão! – Mas eu duvido que você vá conseg...
Roberto nem sequer teve tempo de terminar a frase. Guilherme apanhou a caixa e, apertando um pequeno botão no centro do pentagrama, a abriu sem maiores dificuldades.
– O que você estava dizendo? – perguntou o garoto retirando um tabuleiro e um pequeno estojo do interior da caixa e colocando-os sobre o carpete.
– Ora, você abriu uma caixa! Grande coisa! – exclamou Roberto, sem graça, após dar uma golada em sua cerveja. – O que você quer de mim? – Um troféu?
– Até que não seria má ideia! – respondeu Nathália, sorrindo. – Não é todo dia que vemos um garoto de 14 anos abrir uma caixa que um marmanjo não conseguiu abrir.
Todos riram, exceto Roberto que, ignorando a zombaria, pegou o tabuleiro.
– Vamos jogar logo! – pediu ele, notadamente, irritado.
– Tudo bem! Nós não vamos mais tirar sarro da sua cara, amor! – disse Elisa cessando as risadas e apanhando o estojo que Guilherme colocara no carpete.  – Que estranho! – exclamou ela alguns instantes depois. 
– O que foi?
– São as peças... não consigo tirá-las do lugar! Estão presas! – respondeu, segurando o estojo com uma das mãos e tentando puxar as peças com a outra.
– Talvez devêssemos ler o manual primeiro!
– Onde você achou esse troço velho? – perguntou Nathália observando o bloco de folhas amareladas contido nas mãos do irmão.
– Estava aqui, no interior da caixa!
– Você pirou?! – indagou Roberto arrancado o bloco das mãos de Guilherme. – Seria preciso o feriado inteiro para ler esse monte de folhas. – Vamos ler o básico e esta de bom tamanho! – continuou ele enquanto folheava as páginas, manuscritas, que pareciam ter séculos de idade. – Aqui está! – exclamou, ao bater os olhos, em um dos parágrafos que leu por alto. – Para iniciar o jogo, é preciso espetar o dedo com a agulha negra e derramar uma gota de sangue sobre o circulo, de igual coloração, que se encontra no centro do tabuleiro.
– Agulha negra?! Que droga é essa? – indagou Fabrício.
– Deve ser isso! – respondeu Elisa retirando o estranho objeto do estojo.
– Não vou espetar meu dedo com essa porcaria! Isso é bizarro demais! – exclamou Nathália.
– Não vai me dizer que está com medo de um jogo idiota, vai? – perguntou Elisa furando o dedo indicador da mão esquerda.
Todos presenciaram a moça levar a mão até o centro do tabuleiro e despejar uma gota de seu sangue que evaporou, no exato instante, que colidiu sobre a superfície do círculo negro.
– Por Deus! – exclamou Nathália ao ver a gota de sangue desaparecer como fumaça. 
O grupo ficou, em silêncio, observando o local onde ocorrera o fenômeno estranho até que algo ainda mais sinistro aconteceu. No interior do estojo, uma das peças, que até então parecia estar presa, saltou como se houvesse sido liberada pelo próprio jogo e, no interior do círculo negro do tabuleiro, surgiu a mensagem: Boa sorte, jogadora n° 936!
– Estou chocada! – disse Elisa boquiaberta. – Tenho que admitir... estava enganada ao dizer que o jogo era do Paraguai! Tem muita tecnologia para ser de lá! Mas amanhã nos vamos voltar até o posto para perguntar qual foi o motivo que os levaram a colocar um jogo usado no interior daquela máquina! Isso é um absurdo!
– Por que acha isso, amor?
– Você ainda pergunta?! – Olha o estado desse manual! – respondeu ela apontando para as páginas amareladas que Roberto segurava. – E com esse número que apareceu no tabuleiro, presumi-se que 935 pessoas jogaram este jogo antes de nós!
– Faz sentido! – disse Guilherme ao passo que Fabrício apanhava a agulha negra.
“Boa sorte, jogador n° 937!” surgiu no tabuleiro. Fabrício então passou a agulha para o amigo Roberto e, em seguida, foi a vez de Guilherme. Somente Nathália, tomada por um receio inexplicável, se recusava a perfurar o dedo. Contudo, foi persuadida pelo namorado e a jogadora n° 940 acabou ingressando no jogo. Elisa colocou, sobre o tabuleiro, as 5 peças que foram liberadas enquanto aguardava que Roberto, folheando as páginas do manual, indicasse as próximas coordenadas para iniciar o jogo.  
– O que foi? – perguntou Nathália, ao ver Roberto com os olhos vidrados numa determinada página do manual. Seu semblante indicava um misto de preocupação e medo.
– A-Acho que vo-você estava certo, Guilherme. – respondeu gaguejando. – Era melhor termos lido o manual!  
– Não brinca assim cara! Você vai deixar a Nathália ainda mais assustada!
– Mas eu não estou brincando, Fabrício! – Olha aqui! Leia isso! – respondeu Roberto, com os olhos arregalados, entregando o manual que Fabrício apanhou ainda desconfiando se tratar de uma brincadeira de mau gosto.
– O que tem demais nisso aqui? – É só uma lista de nomes!
– Leia os últimos!
Ao conduzir os olhos até o final da lista Fabrício, estremeceu.
– Como isso é possível?! – Foi você! – acusou ele.
– Como poderia ter sido eu? – A letra esta idêntica a que consta no restante do manual! Eu teria que treinar horas para conseguir imitar essa caligrafia.
– Será que um de vocês pode me dizer o que está acontecendo? – pediu Nathália cada vez mais apavorada com aquilo tudo. 
– Nossos nomes estão na lista de jogadores que já participaram deste jogo! 
– O que foi que disse?!
– Isso mesmo que você ouviu! – Toma veja com seus próprios olhos! – exclamou Fabrício entregando o manual na página onde se encontrava a lista de nomes.
Nathália empalideceu ao ver seu nome completo constando naquela página envelhecida e, sentindo-se tonta, precisou sentar. Acomodada sob o sofá, leu e releu a página mais umas duas ou três vezes como se não acreditasse no que via.
– Pessoal! – chamou Elisa, ajoelhada diante do tabuleiro. – Vocês já tinham visto isso?
Todos voltaram os olhos para o tabuleiro e, no centro escuro, como se fosse uma espécie de tela de televisão, puderam ler a seguinte frase: “Sua rodada, jogadora n° 936”.
– Isso só pode ser coisa do demônio! – exclamou Nathália. – Eu não quero mais jogar!
– Você não pode! Aliás, nenhum de nós pode fazer isso! – disse Guilherme lendo o manual. – Aqui consta que após realizado o ritual de iniciação e recebido um número de identificação, nenhum participante tem o direito de desistir. É preciso jogar até o fim. Vencendo o jogo ou sendo vencido por ele! 
– O que essa porcaria de manual quer dizer com “não ter direito”? – indagou Roberto.
– Cale a boca seu idiota! Isso é tudo culpa sua! – Se não tivesse apanhado essa droga de jogo naquela máquina estúpida não estaríamos passando por isso agora!
– E quanto a você? – Ainda há pouco estava dizendo que não era má ideia jogar esse troço macabro! – retrucou Roberto.
– Não vai adiantar ficarmos procurando um culpado agora! Segundo consta no manual, nós precisamos jogar até um de nós vencermos, não é isso? – Então por que vocês não vêm até aqui para resolvemos essa situação? – sugeriu Elisa.
– Ela tem razão! – exclamou Fabrício se sentando próximo ao tabuleiro. – Guilherme, por favor, veja no manual o que é preciso fazer para acabarmos logo com isso!
O membro mais jovem do grupo foi passando as páginas até finalmente encontrar o que procurava.
– Aqui diz que, após havermos recebido o devido número de identificação, tudo o que precisamos fazer é rolar o dado, mas acho que seria bom se lêssemos o manu...
Enquanto Guilherme falava, Elisa apanhou o estojo, novamente, e de lá retirou o pequeno cubo vermelho com números pretos e antes mesmo que o garoto terminasse de falar ela lançou sua sorte.
– Número 5! – exclamou ela quando o dado parou de rolar.
As palavras contidas no centro do tabuleiro então se modificaram e uma nova frase surgiu sob o fundo negro:
Você teve medo de escuro até os 16 anos de idade, jogadora n° 936?”
– Que droga de pergunta é essa? – indagou Elisa. – O que eu faço agora, Guilherme?
– Ah, ótimo! Agora você quer que eu leia o manual?!
– Responde logo, garoto!
Emburrado, Guilherme folheou duas ou três páginas, leu alguns parágrafos e após um breve instante, respondeu:
– Segundo essas escrituras, toda vez que a peça parar em uma casa branca da trilha será preciso que o jogador responda a pergunta que aparecer no centro do tabuleiro. A peça só avançará se o participante responder com a verdade. Caso algum participante consiga chegar ao final da trilha, o mesmo receberá o direito de realizar qualquer um de seus desejos.
– Epa! Realização de desejos?! – O negócio ta ficando bom! – exclamou Elisa satisfeita por ouvir aquilo. – Sim! Eu tive medo do escuro até os 16 anos! – respondeu levando um susto em seguida, pois a peça começou a se deslocar sozinha.
Todos ficaram observando a peça que se movimentava, vagarosamente, em direção a quinta casa da trilha. Foi no exato instante em que a peça estacou que as luzes da residência se apagaram. Nathália começou a gritar e todos tentaram acalmá-la. O alvoroço estava feito.
– Fiquem todos calmos! Foi só uma infeliz coincidência! – Vou até o porão ver o que aconteceu. Provavelmente foi só a chave de luz que se desligou sozinha... isso é, perfeitamente, normal em casas antigas como esta. – esclareceu Fabrício, se levantando. – Roberto, por favor, vá até a cozinha e pegue algumas velas. Você deve encontrá-las em alguma das gavetas do armário. A caixa de fósforos está próxima ao fogão.
– Deixa comigo! – respondeu Roberto, disparando em direção a cozinha.
Pedindo para que os demais ficassem ali reunidos, Fabrício foi em direção ao porão, iluminando o caminho com a luz escassa de seu telefone celular. Guilherme, por sua vez, caminhou até a janela, abriu as cortinas e viu que nas demais residências a energia elétrica funcionava bem. Já Elisa, tentava acalmar Nathália, mas não conseguia esconder seu incômodo por estar imersa no breu total. Certamente, ainda havia algum resquício de sua fobia da adolescência em seu íntimo.
– Traz logo essas velas! – gritou ela.
– Já vou, já vou! – respondeu Roberto dá cozinha enquanto acendia uma das três velas que havia encontrado na primeira gaveta do armário.
Não demorou muito e Fabrício regressou com a mesma luz escassa de seu celular. A sala, precariamente, iluminada pela chama trêmula de três velas, divergia do restante da casa envolvida pela escuridão.
– O que houve? – perguntou Roberto ao vê-lo retornar. – Não conseguiu religar a chave de luz?
Fabrício fez um leve gesto com a cabeça indicando que não. Embora parecesse assustado com a situação, tentou dissimular afirmando que deveria se tratar de uma falta de luz geral nas redondezas. Contudo, igualmente a Guilherme ele já tinha visto por uma das janelas da casa que não se tratava de um apagão geral e que o mais provável era que aquela súbita falta de luz tivesse algo haver com o misterioso jogo. Todavia, decidiu não dizer o que pensava, pois não iria adiantar nada se o grupo entrasse em desespero. Ao invés disso, ele disse que, provavelmente, a luz iria voltar logo e, se sentando, apanhou o dado para jogar seu turno como indicava o centro do tabuleiro.  
O dado rolou e rolou até parar sobre o carpete com o número 6 voltado para cima. Imediatamente todos olharam para o tabuleiro aguardando pela pergunta que viria, mas desta vez, não houve nenhuma e a peça iniciou a se movimentar, lentamente. Notando que a sexta casa do tabuleiro possuía uma coloração diferente, Fabrício, imediatamente, indagou a Guilherme o que acontecia ao parar numa das pouquíssimas casas vermelhas que havia ao longo de toda a trilha. O garoto, rapidamente, se pôs a procurar. A peça já estava quase concluindo seu trajeto quando ele encontrou a resposta. Constava no manuscrito que o jogador que tirar o número que o conduza até uma casa vermelha não necessita responder nenhuma pergunta para avançar. Fabrício então respirou aliviado enquanto, no centro do tabuleiro, surgiu a mensagem indicando ser a vez do jogador de número 938.  
– Toma Roberto! É a sua vez!
O rapaz apanhou o dado que Fabrício entregava e o jogou sobre o carpete. O pequeno cubo rolou, duas ou três vezes, e parou indicando o número 3. No centro do tabuleiro então se formou uma pergunta:
 “Você sempre teve medo de perder sua mãe, jogador n° 938?”
– Não! – respondeu sem pestanejar.
O grupo aguardou que a peça se movesse, no entanto, a peça de Roberto permaneceu no mesmo lugar e no circulo central surgiu a frase dizendo ser a vez do jogador número 939.
– Não entendi! – disse Nathália confusa. – Por que a peça dele não se mexeu?
– Deve ser por que eu menti! – Lembro que seu irmão leu algo dizendo que a peça somente avançaria se o participante respondesse com a verdade.
– E por que não disse a verdade então? – perguntou Elisa. – Não quer ter o seu desejo realizado?
– E arriscar perder minha mãe?! – Não! Prefiro ficar com a minha peça onde ela está. – Todos nós vimos o que aconteceu quando você disse que tinha medo do escuro! – É a sua vez Guilherme! – concluiu ele entregando o dado.
O adolescente engoliu a saliva e segurou o dado que sacudiu, algumas vezes, no interior das mãos, em forma de concha, antes de arremessá-lo sobre o carpete. Cruzou os dedos e soltou um grito de alivio quando viu o dado parar indicando o número 6. A peça de Guilherme ficou ao lado da peça de Fabrício e então surgiu no tabuleiro a frase que dizia ser a vez da jogadora 940.
Nathália tinha as mãos trêmulas quando apanhou o dado. Estava apavorada, mas, segundo a regra do jogo, não podia desistir e desta forma não teve outra opção a não ser lançar sua sorte. O dado foi atirado e ele girou e girou até parar com o número 1 voltado para cima. Todos olharam para o centro do tabuleiro que apresentava a seguinte pergunta:
“Você tem nojo de baratas, jogadora n° 940?”
– Tenho ué! – Quem não tem? – respondeu inocentemente.
Ao se dar conta de que havia respondido a verdade Nathália levou as mãos sobre a boca, mas já era tarde demais. A peça se movimentou, uma casa, e centenas de baratas começaram a surgir como se houvesse um bueiro por debaixo do tabuleiro. Os insetos voavam e subiam no corpo de Nathália que berrava tentando retirá-las, mas eram muitas e não foi possível evitar que seu corpo fosse completamente encoberto por baratas dos mais variados tamanhos que tentavam adentrar em seu corpo por todos os orifícios possíveis. Os rapazes pisavam nos insetos que não paravam de surgir enquanto Elisa gritava assistindo a tudo de cima do sofá.
Embora os rapazes se esforçassem, Nathália acabou sufocando com as dezenas de insetos que adentravam pelas suas narinas e boca. A jovem de 23 que se sacudia, freneticamente, tentando respirar, parou de se movimentar ficando inerte sobre o carpete. Guilherme e Fabrício se agarravam ao corpo, sem vida, de Nathália enquanto as baratas iam desaparecendo como mágica.
– Pessoal... nós temos que continuar o jogo ou isso não vai terminar! – Tenho certeza que é o que Nathália gostaria que fizéssemos agora! – disse Elisa, simulando tristeza, após ficar algum tempo em silêncio observando tudo aquilo.
– Como pode saber o que minha irmã gostaria que fizéssemos?! – indagou Guilherme em meio ao choro copioso. – Ela esta morta e foi esse jogo maldito quem a matou! – Não vou mais jogar!
– Ele está certo! – exclamou Roberto. – Esse jogo vai acabar matando a todos nós!
– Vocês estão esquecendo que não podemos desistir?! – gritou Elisa com raiva.
Todos estranharam aquela atitude e, percebendo isso, a moça, rapidamente, se recompôs, voltando a falar no mesmo tom sereno e entristecido de outrora.
– Não sabemos o que pode nos acontecer se desistirmos! Além disso, o jogo é o único meio de trazer Nathália de volta! Tudo que precisamos fazer é vencê-lo e...
– Desejar Nathália viva! – completou Fabrício. – Elisa tem razão! Ainda podemos salvá-la!
Embora a ideia de desejar que Nathália revivesse fosse, genuinamente, boa, não era a real intenção de Elisa, que utilizara toda sua astucia para persuadir o grupo a voltar para o jogo. Na verdade, a bela moça estava, completamente, envolvida pela ganância e já não enxergava nada além de suas próprias ambições. Sem se dar conta disso, o grupo se sentou novamente ao redor do tabuleiro, imbuídos de trazer Nathália de volta. No centro negro a frase indicava ser o turno da jogadora n° 936.
– Não se preocupe, Guilherme! Nós vamos trazê-la de volta! – exclamou Elisa, falsamente, antes de lançar sua sorte novamente.   
O número no dado foi 5 e, disfarçadamente, a moça vibrou com o número elevado que havia tirado enquanto uma pergunta se formava no centro do tabuleiro:
Você tem medo de envelhecer, jogadora n° 936?”
Todos olharam para Elisa que parecia refletir. Não demorou muito e veio a resposta:
– Sim, eu tenho medo!
A peça iniciou a se movimentar e, em seu íntimo, Elisa festejava ao ver os concorrentes ficando para trás. Quando as cinco casas foram traçadas a moça desabou sobre o carpete gritando de dor.
– O que foi Elisa?! – indagava Roberto, aos gritos, tentando acudi-la, no entanto, nada além de urros e gemidos saiam da boca da moça.
Num processo que parecia extremamente doloroso, Elisa viu sue próprio corpo perder os contornos da juventude. Sua pele enrugou, seus cabelos ficaram grisalhos e sua voz ficou rouca como a de uma senhora de 90 anos de idade. Quando, finalmente, os gritos cessaram, Roberto saltou para trás sem acreditar no que seus olhos presenciavam. Sua namorada agora tinha o aspecto de uma idosa.
Desnorteado ele foi até a cozinha para apanhar uma das garrafas de vodka, que havia comprado no posto, e trouxe para a sala, bebendo no próprio gargalo. Todos olhavam abismados para a envelhecida Elisa que outrora ostentava uma aparência bela e jovial.
– O que está esperando?! É a sua vez! – disse a velha com sua voz trêmula.
Fabrício desviou os olhos da vovó que, há poucos instantes, era uma belíssima moça que lhe despertava profunda atração e concentrou-se no seu turno. Calculou as casa a frente da sua peça e concluiu que precisaria de mais um 6 para alcançar a próxima casa vermelha. Sacudiu o dado numa das mãos e então o lançou sobre o carpete.
– Número 2! – exclamou desanimado.
“O câncer é algo comum em sua família e as visitas ao médico que você realiza, todos os anos, revelam seu medo por carregar essa herança genética, não é verdade jogador n° 937?”   
– Não! – Não é verdade! – respondeu de imediato.
A peça permaneceu imóvel e o tabuleiro então indicou ser a vez do jogador n° 938.
– Desculpe pessoal! – murmurou Fabrício, envergonhado, por não ter enfrentado seu medo.
– Não tem importância, Fabrício! – exclamou Roberto limpando o canto da boca por onde escorrera um pouco da vodka que, compulsivamente, bebia. – O importante é permanecermos unidos para que pelo menos um de nós possa vencer esse jogo! – concluiu dando mais uma golada e apanhando o dado.
Sem saber se a confiança que sentia era fruto de sua personalidade ou se advinha do álcool, Roberto lançou sua sorte.
– 4! – exclamou ele ao ver o dado parar de rolar.
“Seu pai fora um homem bronco que, covardemente, agredia você e sua mãe todas as vezes que voltava para casa, alcoolizado e embora só lhe reste às lembranças desta fase da vida, o pavor e o trauma por levar aquelas surras brutais, ainda reside em seu coração, não é verdade jogador n° 938?  
– Sim, é verdade!
A peça de Roberto iniciou a se deslocar e Guilherme não conseguiu conter sua curiosidade:
– O que será que vai acontecer quando a peça terminar de se movimentar?
– Nada! – respondeu Roberto, segurando sua garrafa, que já estava, praticamente, pela metade. – Faz mais de oito anos que o desgraçado do meu pai morreu! – concluiu entregando o dado ao garoto.  
Embora Roberto acreditasse que nada pudesse ocorrer, não foi o que de fato aconteceu, pois, alguns poucos segundos, após sua peça parar na casa situada entre as peças de Guilherme e Fabrício, pancadas violentas contra a porta foram ouvidas.
– O que será isso?! – indagou Fabrício, assustado, com o som das batidas brutais.
A resposta veio logo em seguida, pois todos foram capazes de ouvir a voz gutural que veio lá de fora:
– Sei que está aí dentro, Roberto! Sinto o cheiro do seu medo! – Abra essa porta, imediatamente!
Todos estremeceram de medo e Roberto, sem acreditar que aquilo fosse possível, caminhou até a porta e, pelo olho mágico, pôde ver a figura pútrida que desejava entrar na residência. De fato era seu pai ou, pelo menos, o que havia sobrado dele, pois faltava-lhe um olho, numa das cavidades oculares, e a pele estava praticamente toda carcomida por vermes que rastejavam pela crateras abertas sob sua carne apodrecida. Sentido-se dominar pelo pavor, Roberto percebeu que suas pernas, afetadas pelo medo estarrecedor, enrijeciam e tudo o que conseguiu fazer foi gritar enquanto segurava a porta, imaginando que a qualquer momento aquele morto-vivo iria arrombá-la. De repente, as batidas cessaram e olhando novamente pelo olho mágico, Roberto viu o zumbi, com seu caminhar tétrico, se deslocar até uma pequena casinha, de madeira, situada no quintal da casa de Fabrício.
– Ele foi embora? – perguntou a velha amedrontada.
– Não! Ele está indo na direção de uma casinha de madeira! – respondeu Roberto.
– A casa de ferramentas do meu pai!
– Que tipo de ferramentas?!
Nem foi preciso que Fabrício respondesse, pois ao olhar novamente, pelo pequeno orifício da porta, Roberto viu a figura, asquerosa, retornando com um imenso machado nas mãos.
– Ele está vindo com um machado! – berrou apavorado.
– Depressa Guilherme! – Vá até o quarto do segundo andar e pegue a pistola que meu pai guarda na gaveta do criado mudo!
O garoto, prontamente, largou o dado que segurava e correu na direção das escadas de acesso ao segundo andar levando uma vela consigo. O dado rolou até parar com o número 6 voltado para cima e, como o tabuleiro indicava ser a vez do jogador n° 939, a peça iniciou a andar. Não houve nenhuma pergunta, pois novamente Guilherme tivera a sorte de parar numa casa de cor vermelha. Fabrício e Roberto se esforçavam para empurrar um pequeno armário na direção da porta enquanto Elisa se apressava para jogar seu turno. Não tardou e o som de machadadas colidindo conta a madeira ecoou. Roberto corria pela sala arrastando objetos para tentar impedir a entrada daquela criatura grotesca quando, de repente, algo fê-lo parar.
Ao lado de Elisa o dado indicava o número 4 e, no centro do tabuleiro, lia-se a seguinte pergunta:
– É verdade que você possui um caso com o participante de n° 937, jogadora n° 936?”
A senhora de feições enrugadas olhava para a fisionomia séria de Roberto enquanto Fabrício, sem desconfiar do que estava se passando, gritava para que o amigo se apressasse trazendo mais objetos.
– Vá ajudar o Fabrício! – exclamou Elisa tentando fazê-lo sair dali, mas Roberto se manteve onde estava.
– Responda a pergunta, primeiro!
– Você não está desconfiando que isso seja verdade, está?
– Responda! – vociferou sentindo o ódio de haver sido traído.
– N-não! Não é verdade! – gaguejou Elisa, contudo a peça permaneceu imóvel.
As machadadas já começavam a abrir uma fenda na porta quando Fabrício viu Roberto se aproximar trazendo o jarro de flores artificiais que decorava a mesa de mogno da sala.
– Isso não vai adiantar em muita coisa! – exclamou imaginando que o objeto fora trazido para tentar conter o morto-vivo do lado de fora da casa, no entanto, Roberto tinha outros planos.
Com um violento golpe ele quebrou o jarro de flores sobre a cabeça de Fabrício que, sem esperar pelo, súbito, ataque, desabou sobre o corredor. Uma imensa poça, vermelho escarlate, se fazia ao redor do anfitrião da casa quando Guilherme retornou trazendo a pistola.
– O que aconteceu?! – inquiriu, espantado, ao ver o corpo de Fabrício estirado.
– É tudo culpa deste jogo diabólico! – respondeu Roberto que com uma das mãos afastava a velha e com a outra despejava o restante da vodka de sua garrafa sobre o tabuleiro.
– Rápido Guilherme, atira nele! – gritou Elisa desesperada. – Ele vai atear fogo no jogo!  
– Não faça isso! – ordenou Guilherme, apontando a arma na direção de Roberto. – O jogo é o único meio de trazer minha irmã de volta!  
– Atira! – urrou a velha novamente levando um safanão que a fez rodopiar e cair sobre o sofá.
– Sinto muito pela sua irmã, Guilherme! Mas é melhor acabar com isso enquanto ainda estamos vivos! – disse ele, lançando uma das vê-la sobre o tabuleiro encharcado de vodka.
Apertando o gatilho, Guilherme tentou evitar, mas a pistola ainda não havia sido destravada. A vela então caiu sobre o tabuleiro, contudo, não foi ali o local onde as chamas se alastraram, mas sim sobre o corpo do indivíduo que tentara dar fim ao jogo. Numa espécie de combustão espontânea, labaredas, imensas, lambiam o corpo de Roberto que, gritava como um louco, correndo de lá pra cá enquanto sentia sua carne queimando. Guilherme correu até a janela mais próxima, arrancou uma das cortinas com um puxão e foi até onde Roberto se encontrava para abafar o fogo.
Quando finalmente as chamas se extinguiram, Roberto tinha cerca de 60% do corpo queimado. Seu rosto estava, parcialmente, desfigurado e, boa parte, de suas roupas estava grudada sob a pele.
– Aquela coisa vai entrar! – exclamou Elisa olhando para a porta que já não era capaz de resistir por muito tempo.
Guilherme mandou que Elisa fosse para o porão e levasse o tabuleiro com ela. Eles precisavam terminar o jogo de qualquer maneira. A velha, imediatamente, fez o que foi pedido: Apanhou o jogo com cheiro de vodka o levou para o porão.
– Depressa ele vai entrar a qualquer momento! – Salve-se! Vá para o porão! – balbuciou Roberto com dificuldade.
– Nem pensar que vou deixá-lo aqui para morrer! – Vamos! Você vem comigo!  
Guilherme ajudou Roberto a ficar de pé e o escorou pelo corredor que levava até o porão. Os dois caminhavam, o mais depressa que podiam, quando ouviram um estrondo vindo de trás. Viraram o rosto e puderam ver que a criatura monstruosa derrubava os móveis que o impediam de passar. Imediatamente os dois iniciaram a correr, tropeçando e esbarrando, nos objetos da casa que encontravam pela frente. O falecido pai de Roberto tropeçou sobre o corpo de Fabrício, que jazia inerte sobre o chão da entrada da casa, o que concedeu aos dois fugitivos a chance de alcançar, em segurança, as escadas que levavam ao porão.
Com dificuldade, Guilherme e Roberto desceram os degraus e quando, finalmente, atingiram a entrada do porão, viram a criatura deformada surgir no topo da escada.
– Rápido, me passa a pistola e entra!
– O quê? – indagou Guilherme surpreso.
– Eu disse rápido! – gritou Roberto vendo a aberração descer, apressadamente.
O garoto entregou a arma e passou pela porta, Roberto então a destravou e disparou seis tiros contra o zumbi que continuava vindo em sua direção. Percebendo que os disparos não causavam dano algum, Guilherme, rapidamente, puxou Roberto para dentro e trancou a porta, segundos antes, de a primeira machadada ser lançada contra aquela peça de madeira envelhecida que, certamente, não iria suportar muita coisa.
– Eu me esqueci de trazer uma vela! – exclamou Elisa, lamentosamente, imersa no breu do porão.
– Vamos usar meu celular! – disse Guilherme puxando-o do bolso.
A luz era fraca mais era o suficiente para que pudessem continuar o jogo. O tabuleiro indicava ser o turno do jogador n° 938 e Roberto, sentindo as queimaduras pelo corpo, apanhou o dado.
– Número 3! – exclamou Elisa ao ver o dado que rolara para perto dela.
A pergunta mal havia se formado e Roberto respondeu negativamente. A peça manteve-se parada e o tabuleiro então indicou ser o turno do jogador n° 939.
– Depressa pegue o dado e jogue, Guilherme! – Não vai demorar muito até aquela porta ir abaixo e você é o que está mais perto de conseguir terminar esse jogo, portanto, tudo o que vou fazer, daqui em diante, é rolar o dado e mentir para todas as perguntas que surgirem para mim, assim pouparemos algum tempo para você.
– Não sei se vou conseguir!
– Você vai conseguir! Tem que conseguir! – disse Roberto colocando as mãos sobre os ombros do garoto que agora sentia o peso da responsabilidade de pôr um fim naquele inferno.
Uma das machadadas atravessou a porta e Roberto precisou correr para tentar bloquear a passagem com toda a tralha que encontrava pela frente. Guilherme, por sua vez, apanhou o dado e o sacudiu com fé. Quando o cubo parou de girar, ele sorriu com o número que havia tirado. Novamente um 6 o que o colocava, por mais uma vez, isento de perguntas. Sua peça, vagarosamente, se deslocou para a próxima casa vermelha. Faltava menos da metade para Guilherme terminar o jogo.
– É a sua vez! – disse ele entregando o dado para Elisa.
 Profundamente irritada com a sorte de Guilherme e temendo a possibilidade de ver aquele adolescente ganhar o direito de realizar o desejo em seu lugar, ela apanhou sua peça e a colocou a uma casa do final da trilha.
– O que está fazendo?! – indagou Guilherme sem entender o motivo daquela atitude.    
– O que você acha?! – Vou ganhar o jogo e acabar com isso de uma vez!
– Mas isso é trapaça! Não precisa fazer isso Elisa, eu já estou quase terminando!
– E é exatamente por isso que estou tomando essa medida preventiva! – Sou eu quem vai ganhar!
– O que vocês estão esperando para jogar! – berrou Roberto, enquanto arrastava uma máquina de lavar, notando que os dois conversavam mais do que jogavam. 
Iluminando o rosto de Elisa, Guilherme olhou fixamente em seus olhos e notou um brilho sinistro que estava ali contido.
– Não importa quem irá ganhar! Nós combinamos que o vencedor iria desejar minha irmã viva novamente e agora não é só ela. Também tem o Fabrício!
– Eles que se danem! – respondeu rispidamente. – Se pensa que eu vou continuar velha, deste jeito, para salvar a pele daqueles dois, você está muito enganado! – Essas rugas são temporárias, pois eu vou ganhar esse jogo e então serei jovem para sempre! – concluiu a velha preparando-se para jogar o dado.
Vendo que a chance de trazer Nathália de volta estava por um fio, Guilherme saltou sobre Elisa antes que ela pudesse iniciar sua jogada e os dois entraram numa ferrenha disputa pelo dado. Roberto continuava retardando a entrada do miserável, que havia regressado do inferno para atormentá-lo, quando percebeu a briga. Pela pouca luz que o visor do celular emitia ele podia ver a silhueta dos dois se embolando sobre o chão do porão. A todo custo, Guilherme se esforçava para impedir aquela velha gananciosa, mas em meio a briga, Elisa acabou deixando o dado cair e o jogo considerou seu turno iniciado. O pequeno cubo vermelho rolou até parar indicando o número 1.
Elisa, que havia colocado a própria peça na última casa da trilha, gargalhou ao ver que havia tirado o número que precisava. Guilherme se voltou para o tabuleiro e viu a peça daquela víbora terminar o jogo. Elisa levantou-se e já se preparava para desejar a juventude eterna quando viu a seguinte frase se formar no centro do tabuleiro:
“Segundo a regra 21, contida no manual, será recompensado com punição, todo participante que, de alguma maneira, utilizar de trapaça para beneficiar a si ou outrem”
Ao terminar de ler, Elisa, imediatamente, caiu sobre os joelhos, sentindo uma dor atroz invadir seu peito. Com a horrível sensação de algo estar espremendo seu coração, ela tombou colidindo, pesadamente, contra o solo e, de seus orifícios, iniciou a escorrer o líquido rubro que circulava em suas veias e artérias. Guilherme observava, sem nenhuma compaixão, a velha moribunda que se contorcia de dor. Sentindo a vida se esvair ela pedia ajuda ao garoto que se manteve, impassível, vendo-a morrer. 
Assim que o corpo de Elisa parou de se movimentar, o centro do tabuleiro indicou ser a vez do jogador n° 938. Guilherme avisou a Roberto que deixou a porta para jogar seu turno. Sem demora apanhou o dado e o lançou enquanto olhava, por cima dos ombros, para ver se o maldito zumbi havia conseguido quebrar a porta por completo. O dado indicou número 5, a pergunta se formou, Roberto mentiu, mais uma vez, e o tabuleiro indicou ser o turno do jogador n° 939. Guilherme apanhou o dado e novamente um grito de euforia ecoou de sua garganta. Era o seu quarto 6 consecutivo. A peça se deslocou, vagarosamente, enquanto a porta do porão ia sendo estilhaçada.
– Só preciso de mais um 6 e então tudo estará terminado! – disse Guilherme entregando o dado a Roberto que, preocupado, logo o lançou. Novamente mentiu e devolveu o dado a Guilherme. A porta já havia desabado e agora o repugnante morto-vivo tentava empurrar todas as tralhas que Roberto havia colocado ali para retardá-lo.
– Rápido! Jogue o dado! – gritou vendo que a qualquer momento aquela aberração iria chegar até eles trazendo seu machado consigo.
Guilherme fechou os olhos, sacudiu a mão que continha o dado e o jogou. Mais do que nunca necessitava do número 6 e, fervorosamente, torceu para que ele viesse, no entanto, não foi o que aconteceu. O pequeno cubo parou com o número 2 voltado para cima e uma pergunta se formou.
“Seu maior sonho é ser jogador de futebol profissional, assim como foi seu tio, que, após sofrer um acidente de carro, ficou paraplégico e teve de abandonar a carreira. Perder o movimento das pernas seria como podar seu sonho, não é verdade jogador n° 939?” 
Guilherme sentiu o sangue gelar ao ler a pergunta, pois não conseguia se imaginar fazendo qualquer outra coisa em seu futuro, contudo, a vida de sua irmã estava em jogo. Olhou para a entrada do porão e viu a criatura derrubando os objetos que o impediam de adentrar e então não pensou duas vezes:
– Sim, é verdade!
A peça andou e dali em diante o garoto não foi mais capaz de sentir a própria perna. Estava sentado e assim manteve-se para continuar o jogo.
– Sua vez!
Roberto jogou seu turno, mas antes mesmo que o dado parasse de rolar indicando um número qualquer, ele viu o medonho zumbi, derrubar a máquina de lavar que era o último objeto que impedia sua passagem.
– Essa não! – exclamou ele já sabendo o deveria fazer.
Guilherme arregalou os olhos, de medo, e sem poder se levantar, viu Roberto apanhar a pistola.
– Isso não vai adiantar! – gritou ao se lembrar dos tiros que haviam sido disparados, contra aquela monstruosidade, nas escadas do porão. Contudo, Roberto não pretendia usar a arma contra seu falecido pai.
– Não vou atirar nele!
– O que vai fazer então?! – inquiriu Guilherme, desesperado, vendo aquela coisa que vinha na direção deles.
– Vença o jogo Guilherme! – Faça isso por todos nós! – respondeu Roberto, abrindo um leve sorriso, e, em seguida, disparou um tiro contra a própria cabeça.
O projétil atravessou o crânio do rapaz que tombou com o sangue viscoso saindo do rombo deixado pela bala. Roberto estava morto, mas seu sacrifício não havia sido em vão, pois, como ele tinha imaginado, o morto-vivo desapareceu, assim como as baratas após Nathália haver falecido.
Guilherme respirou fundo tentando se acalmar e, na sequência, se arrastou até onde o dado se encontrava, apanhou o celular sujo com o sangue de Roberto que utilizou para iluminar o tabuleiro onde viu a pergunta que havia sido feita para o jogador n° 938 desaparecer e, logo em seguida, surgir a frase indicando ser o seu turno. Tudo que Guilherme precisava era um 4 e terminaria o jogo sem ter de responder mais nenhuma pergunta.
– Seja o que Deus quiser! – exclamou o garoto lançando sua sorte.
Guilherme mentalizou, com fé, o número que necessitava e quando o dado parou de rolar ele pôde constar que sua sorte havia voltado. Com o número 4 sendo indicado pelo dado a peça se deslocou até o fim da trilha e o garoto então ficou aliviado. O pesadelo havia chagado ao fim, pelo menos era o que ele imaginava.
Um pequeno barulho foi emitido de seu telefone celular que em seguida desligou-se. A bateria havia se esgotado, deixando Guilherme envolvido pelo negrume. Por alguns instantes o silêncio foi total até que, de repente, foi possível ouvir um som, ainda distante, mas que se aproximava. Algo parecido com o tropel de um cavalo. Assustado e desorientado pela escuridão, Guilherme se arrastou na direção da parede que lembrava ser a mais próxima de onde estava. Com movimentos rápidos, o garoto arrastou-se, velozmente, no entanto, não alcançava a parede que lembrava estar bem próxima dele. “O porão não era tão grande assim!” pensava enquanto se esforçava para fugir daquele barulho que vinha em seu encalço, ficando cada vez mais perto.
Sentindo que os braços estavam fatigando, concluiu que logo eles não seriam mais capazes de levá-lo adiante. Seu corpo tremia e lágrimas de medo desciam por seu rosto quando ouviu uma voz desumana ordená-lo a parar. Sem saber ao certo se fora pelo cansaço ou se fora pelo medo do que poderia lhe acontecer caso não acatasse a ordem imposta, Guilherme obedeceu, virou para trás e viu um homem que vinha, montado sobre um búfalo negro, acompanhado de dois cães robustos, cada um com quatro olhos.
Sem conseguir compreender como era possível enxergar aquelas figuras, mesmo estando envolto pela escuridão total, Guilherme, num tom de voz quase inaudível, perguntou:   
– Quem é você?
– Eu sou Yamaraj! O senhor da morte! – respondeu o homem que, vestido em trajes vermelhos, sustinha um laço em sua mão esquerda. – Vim conceder o desejo daquele que venceu o jogo da verdade. – Diga o que queres e assim eu o farei!
– Traga meus amigos e minha irmã de volta a vida!
– Um desejo, uma vida! – exclamou Yamaraj. – Escolha somente um destes que me pede e eu o ressuscitarei!  
Com muito pesar, Guilherme lamentou pelos demais, mas se podia salvar somente um este seria sua irmã. Já abria a boca para pedir que o sopro da vida fosse devolvido a Nathália quando teve um ideia.
– Neste caso eu gostaria de pedir outra coisa! – disse ele confiante de que tudo iria dar certo. – Desejo que nem eu, nem minha irmã e tampouco meus amigos tenhamos jogado essa porcaria de jogo!
Yamaraj sorriu.
– Que assim seja! – respondeu enquanto Guilherme sentiu um sono pesado dominá-lo. – Melhor sorte com as palavras da próxima vez!
– Não haverá próxima vez! – falou o garoto, instantes antes, de cair num sono profundo. 
O som de uma buzina fez Guilherme despertar, assustado. 
– Onde estamos?! – perguntou para irmã, sentada no banco da frente do carro, ao lado de Fabrício.
– Em um posto de gasolina! – Olha o meu ursinho! Lindo, não acha?
– É! – respondeu simplesmente. – Ainda falta muito para chegarmos! – indagou sem conseguir se lembrar porquanto tempo havia dormido.
– Não dorminhoco! – respondeu Fabrício, apertando a buzina novamente. – Já estamos no município de Miguel Pereira. Daqui até minha casa é um pulo!
– O que estamos esperando, então?
– O Roberto! – Não sei por que ainda caio nessa conversa de “jogo rápido”! Sempre que alguém diz isso leva uma vida inteira para voltar!  
– Lá está ele! – exclamou Elisa vendo o namorado deixar a loja de conveniências trazendo, numa das mãos, um jogo de tabuleiro e, na outra, um coelhinho de pelúcia rosa. Ele entrou no carro, entregou o bichinho à Elisa e recebeu um beijo caloroso em troca.
 Guilherme olhou para a caixa preta que continha a imagem de um enorme pentagrama e um nome que achou extremamente familiar, no entanto, não conseguia se lembrar de onde o conhecia. Fabrício deu a partida e então os jovens deixaram o posto levando com eles o jogo que transformaria o feriado num verdadeiro pesadelo.

Por Thiago Tavares.
        CONTOS DE TERROR