domingo, 29 de janeiro de 2012

O cético (Coletânea)

O CÉTICO

Cansado e com fome, Rafael acordou, ouvindo passadas. Abriu os olhos e com a vista ainda embaçada viu a senhora manca e cega de um olho que, tarde da noite, entrava naquela encruzilhada com uma sacola preta nas mãos. “Talvez agora ela me dê ouvidos!” pensou ele que, sem perder tempo, se levantou e foi tentar se desculpar por mais uma vez:
– Sinto muito pelo meu atrevimento! Eu estou, profundamente, arrependido! Retire a maldição e deixe-me ir embora, por favor... – pedia em tom de desespero, contudo, a sombria mulher parecia não poder ouvi-lo. Como fazia das outras vezes, abriu a sacola que trazia consigo e iniciou a fazer uma oferenda destinada ao mundo espiritual.
Assistindo a tudo, Rafael continuava a implorar por perdão até que, cansado de ser ignorado, perdeu a paciência:  
– Velha maldita! – Por que nunca me responde?! – gritou, com ódio, enquanto a mulher, de fisionomia marcada pelo tempo, acendia velas e colocava algumas frutas no interior de uma alguidar.
Novamente não houve nenhuma resposta e tomado pela fúria, Rafael tentou por diversas vezes agredi-la com socos e ponta pés, contudo, seus golpes atravessavam o corpo frágil daquela senhora como se ela não estivesse ali. Sem conseguir compreender aquele estranho fenômeno o rapaz continuou a desferir golpes e mais golpes, num esforço inútil, até sentir suas forças se esvaírem por completo.
Em meio a um choro sofrido, desabou sobre a calçada ouvindo a reza final daquela mulher que em seguida foi embora sem sequer olhar para ele. “Velha cruel!” pensou enquanto observava a senhora manca dobrando a esquina no final da rua.
Naquele momento sua raiva só não era maior que a fome, fato que o fez se arrastar até a oferenda – junto ao poste – onde vultos negros já disputavam espaço para sugar a energia etérica daqueles alimentos que estavam ali contidos. (Frango, frutas e bebida alcoólica... para alguém que já não comia há dias, aquilo era um verdadeiro banquete) Rafael juntou-se às entidades e, sem saber ao certo como fazia aquilo, iniciou a tragar a essência daquela oferenda enquanto pensava na ironia que estava vivendo. Justo ele que, desde os 12 anos de idade, chutava as macumbas que encontrava pelas encruzilhadas do bairro, agora necessita delas para saciar a fome. 
Quando finalmente se sentiu ligeiramente melhor, Rafael se afastou das demais entidades. Indo até o muro de uma casa, aparentemente, abandonada, recostou-se. A mente, demasiadamente, perturbada não lhe permitia mensurar a quanto tempo estava aprisionado naquela encruzilhada. Tudo o que conseguia se lembrar era como aquele pesadelo havia começado...    
                                                        
Sabe aquele tipo de pessoa que não acredita, em hipótese alguma, na existência de fenômenos metafísicos, religiosos e dogmas? Pois é... assim era Rafael Lopes. Um jovem de 26 anos que não perdia uma boa oportunidade de zombar da crença alheia. Apesar da pouca idade, seus casos de descaso já eram muitos, pois desde menino nunca tratou com seriedade algo que não fosse passível de ser explicado pela ciência.
Sua história de zombaria teve início aos 10 anos de idade, quando passou a frequentar uma igreja – próxima ao condomínio onde morava – só para ter o prazer de divertir os amigos, debochando dos dizeres do velho padre que realizava as missas dominicais. Aos 12, como se aquilo já não lhe bastasse, passou a chutar as oferendas postas nas encruzilhadas do bairro e a dar boas risadas diante dos gritos de evangélicos, que ecoavam do interior das igrejas protestantes, como se o Deus, todo poderoso, deles sofresse de algum tipo de deficiência auditiva. Ainda na adolescência passou a ridicularizar todo e qualquer tipo de dogma ou ritual religioso com o qual se deparava. Para ele as religiões não passavam de uma grande perda de tempo. Todavia, existem forças com as quais não devemos brincar e Rafael acabou aprendendo isso de uma maneira nada agradável.
A estória, aqui exposta, ocorrida num bairro carioca da zona oeste do estado do Rio de Janeiro, versa sobre um sinistro caso divulgado com o único propósito de alertar que, de uma forma ou de outra, todos estamos sujeitos a responder por nossas ações. 
  8 de novembro de 1996

Era madrugada quando Rafael e Rogério – embriagados – voltavam de mais uma noitada de curtição. Conversavam, animadamente, atravessando uma encruzilhada, já bem próxima de onde moravam, quando viram uma senhora manca e caolha parar em frente a um poste e abrir uma sacola preta de onde tirou velas, bebida, alimentos e duas alguidares.
– Para de sujar a rua e vai pra casa dormir, vovó! – gritou Rafael, arrancando risadas de Rogério.
A senhora virou o rosto na direção dos dois ébrios rapazes que, cambaleando, passavam do outro lado da calçada, mas nada disse. Voltou-se novamente para a oferenda e continuou seu ritual. No entanto, Rafael não parou por aí. Ao ver uma garrafa de 51 que a senhora colocava, cuidadosamente, sobre o chão, resolveu atravessar a rua e dar continuidade ao seu desrespeito. Ele não desconfiava que, desta vez, sua zombaria não iria passar impune.
– Com licença! – disse Rafael apanhando a garrafa de cachaça para si.
– Devolva isso, rapaz!
Rafael ignorou a ordem e carregando a garrafa consigo, atravessou a rua novamente, como se nada tivesse acontecido.
– Miserável! – urrou a senhora apontando o indicador de sua mão velha e enrugada na direção do atrevido rapaz. – Que aquele que tem o poder de fechar e abrir os caminhos para o ser humano aja sobre sua vida trancando-a permanentemente!
Ao ouvir aquelas palavras, Rafael, imediatamente, voltou para chutar tudo àquilo que a senhora havia, cuidadosamente, colocado junto da calçada.
– Estou pouco me lixando para suas maldições sem fundamento, velha bitolada! – Olha o que eu faço com toda essa porcaria! – retrucou, desferindo um forte ponta pé numa alguidar que continha frutas em seu interior. 
Percebendo que seu amigo havia passado dos limites, Rogério aproximou-se para tirá-lo de lá e os dois saíram andando para longe da estranha senhora que continuava a fitá-los.
– Vai se arrepender por isso! – disse à mulher com ódio contido em sua voz.
Sem imaginar que a partir daquele momento, seus dias de zombaria estavam contados, Rafael regressou para casa e após uma semana, já nem lembrava mais deste ocorrido.

15 de novembro de 1996

A noite havia apenas começado quando Rafael desceu do elevador deixando pelo ar um delicioso rastro de seu mais novo Pacco Rabanne.  Bem vestido, o jovem rapaz cumprimentou, educadamente, o porteiro do prédio e então ganhou as ruas indo em direção ao barzinho onde havia combinado de se encontrar com alguns colegas da faculdade. Como o local era próximo de sua casa, não levou mais que 20 minutos para chegar ao estabelecimento e – mesmo do outro lado da rua – já era possível ver como o bar, famoso pela boa música e ambiente agradável, estava lotado. Garçons andavam, de um lado para o outro, com suas bandejas repletas de caldeiretas de chopp enquanto um músico, de belíssima voz, embalava os casais apaixonados, ao som de Lembra de mim de Ivan Lins. 
– Rafael! – vociferou alguém, assim que o rapaz adentrou no bar. Era Rogério, que acenava de uma mesa mais ao fundo.
– Olá pessoal! – cumprimentou o recém-chegado, aproximando-se do grupo que animadamente bebia e jogava conversa fora.
– Cara, você não morre tão cedo! Ainda agora eu falava da maldição que te rogaram! 
– Maldição?! – Que maldição, Rogério? – perguntou, se sentando junto à mesa.
– Não vai me dizer que já se esqueceu daquela velha manca e caolha que você roubou na encruzilhada!
– Ah ta...! – disse Rafael que precisou de um breve instante para se lembrar do episódio. – Aquilo é bobagem! E eu não roubei coisa nenhuma. Só peguei o que ela iria desperdiçar. – Onde já se viu? – Colocar uma garrafa de 51, ainda fechada, numa droga de despacho. 
Todos riram, exceto Vinícius. Um colega de turma que parecia bem preocupado.
– Olha eu não sei não cara... tenho uma tia que mexe com essas coisas e pelo que o Rogério nos contou, acho melhor você procurar um pai de santo para tentar te ajudar!
Rafael sorriu com escárnio.
– Desculpa Vinícius, mas se sua tia “mexe com essas coisas” então ela esta perdendo tempo à toa. Isso tudo é crendice e não passa de uma grande besteira. Não vai acontecer nada comigo!
Disposto a convencê-lo do contrario, Vinícius apanhou um livro de umbanda que trazia em sua mochila e abriu na página onde havia uma imagem da entidade que a velha tinha se referido na maldição que lançara, mas de nada adiantou. O ceticismo jamais permitiria que aquele jovem acreditasse na possibilidade de haver realmente sido amaldiçoado. O grupo então entrou em outros assuntos e, sem que se dessem conta disso, as horas foram se passando. Rafael levou um baita susto quando olhou no relógio e viu que já eram 2h da manhã. Estava muito tarde para alguém que iria trabalhar no dia seguinte. Precisava ir embora e, contrariando os pedidos para que ficasse um pouco mais, despediu-se de todos com a promessa de repetir a dose na sexta-feira da semana seguinte.
– Cuidado com a maldição, hein! – ainda brincou Rogério vendo o amigo deixar o estabelecimento. Aquela foi a última vez que Rafael foi visto com vida.
Do lado de fora, o rapaz que só pensava em chegar a casa e desabar sobre a cama, aguardava por um taxi, mas após 15 minutos de espera, acabou desistindo e resolveu ir a pé mesmo. Fazia uma madrugada fria e mesmo com a blusa de manga longa que vestia, Rafael precisava esfregar os braços para afugentar a temperatura amena. O vento gelado soprava pelas ruas vazias enquanto ele avançava ouvindo o som do bar ficar cada vez mais distante. Quando atingiu a encruzilhada onde, na semana anterior, havia se deparado com a esquisita senhora manca que Rogério mencionara, não pôde deixar de se lembrar da conversa que tivera no barzinho. “Como uns marmanjos daqueles podem acreditar em maldição?” pensava ele, ligeiramente tonto, devido à grande quantidade de bebida alcoólica que havia ingerido.  
– Rafael! – bradou uma sombria voz vinda de trás.
Levando um susto, o rapaz virou-se rapidamente, quase perdendo o equilíbrio, mas não viu ninguém. Estava sozinho naquela rua deserta. Acreditando ter imaginado coisa ele decidiu prosseguir, mas antes que desse um novo passo tornou a ouvir a mesma voz:
– Rafael!
Um calafrio percorreu-lhe a espinha diante a reincidência que lhe dava a certeza de não estar imaginando coisas. Virando-se, lentamente, Rafael empalideceu ao constatar que não estava tão só quanto acreditava. Seus olhos fitaram um sujeito exatamente igual à imagem que Vinícius tinha lhe mostrado no bar. Um homem de porte extremamente fino e poderoso que usava cartola sofisticada. Também uma capa azul turquesa com contraste em vermelho e decorada com safiras amarelas. “Tranca ruas!” lembrou o nome da figura do livro ao mesmo tempo em que disparou a correr. O rapaz que até então jamais havia acreditado naquele tipo de coisa tentou escapar do destino que havia traçado para si, no entanto, numa velocidade sobrenatural, a entidade anulou a distância entre os dois e o agarrou pelas costas. Desesperadamente, Rafael gritou pedindo por ajuda, mas ninguém ouviu seus gritos apavorados.
             – Chegou a hora de pagar por suas travessuras, espírito desvirtuado! – sussurrou a entidade, ao pé do ouvido do rapaz, soltando uma gargalhada malévola.
Após essas palavras a entidade desapareceu e Rafael sentiu como se o seu corpo houvesse desabado, no entanto, viu-se ainda de pé. Estava tão atemorizado e preocupado em sair dali que não se deu conta de que seu corpo físico de fato havia tombado – sem vida – sobre o asfalto frio e que agora era somente seu espírito que, desesperadamente, tentava e continua tentando escapar daquele cruzamento.

Como foi dito anteriormente, todos estamos sujeitos a responder por nossas ações. No dia 16 de novembro do ano de 1996, Rafael Lopes foi encontrado, morto numa encruzilhada do bairro onde morava e sua causa mortis permanece desconhecida.
Atualmente, os despojos mortais de Rafael estão enterrados no cemitério, Jardim da Saudade, em Sulacap... quanto ao seu espírito... bom, até os dias de hoje, ainda ouve-se relatos de pessoas que dizem escutar pedidos de socorro ao passarem pela escura encruzilhada de Jacarepaguá, onde tudo aconteceu.  

Por Thiago Tavares.
CONTOS DE TERROR 

3 comentários:

  1. Nota importante: Este conto é mera invenção de uma mente em constante devaneio. Portanto, não se preocupem! Rafael não só não está morto como também não existe.

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  2. Meu caro, achei interessante suas participações lá nos Contos Sombrios. Entretanto, quando tentei comentar, não tive êxito, pois na hora da verificação das palavras, não aparece o campo para eu digitá-las. De qualquer forma, deixo aqui registrado meu gosto pelos contos sombrios.
    Abraço,

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    1. Olá Rodrigo!
      Quando pequeno eu era fã de filmes de terror e, talvez por este motivo, eu tenha começado meus contos por este gênero fabuloso. O blog Contos Sombrios é um excelente local para os apreciadores de textos que seguem esta linha e fico feliz por fazer parte dele.
      Grande abraço!

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